François Mauriac (Bordéus, 1885-1970), Prémio Nobel da Literatura em 1952,
recriou em “Thérèse Desqueyroux” (Cavalo de Ferro) uma personagem com a
densidade emocional capaz de fundamentar todo um romance.
Thérèse ficou órfã de mãe logo quando nasceu. A sua educação foi entregue a
um pai ateu e com ambições políticas. A inquietude esteve sempre na sua vida.
Teve esperanças que o casamento lhe desse tranquilidade. Mas não aconteceu.
Devido à frustrante união com Bernard, ela tenta assassiná-lo. Serão a honra e
o pragmatismo da família, que tanto a aprisionaram, a salvá-la do cárcere.
Com base nesta história, François Mauriac, demonstra a sua assinalável
capacidade de escrita. O autor francês diz tanto com tão pouco. E consegue-o
com frases muito trabalhadas e contidas. O início do 4º capítulo é a súmula da
transformação de Thérèse, da passagem da liberdade ao isolamento e um de muitos
exemplos dessa capacidade literária:
“O dia sufocante do casamento, na estreita igreja de Saint-Clair, onde o
tagarelar das senhoras cobria um harmónio sem fôlego e onde os seus odores se
sobrepunham ao do incenso, foi aquele em Thérèse se sentiu perdida. Entrara
sonâmbula na gaiola e, subitamente, ante o estrondo da pesada porta a
fechar-se, a pobre criança despertava”
O casamento impôs obrigações que Thérèse não estava preparada para
obedecer. A sua consciência debate-se entre a ânsia de viver e os limites
estabelecidos. A teia de ritos sociais aprisiona uma mulher que não quer ver a
sua individualidade subjugada pela família. A gravidez vem enfatizar a prisão
da personagem a papéis sociais agonizantes.
“Gostaria de conhecer um Deus para que ele fizesse que aquela criatura
desconhecida, ainda imbricada nas suas entranhas, nunca se manifestasse.”
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“Não quis aquilo de que me acusam. Não sei o que quis. Nunca soube para
onde tendia essa força diabólica dentro e fora de mim”
O sujeito enunciador (o narrador) aproxima-se o mais possível do sujeito
enunciado (Thérèse). O título do livro é perfeito pela sua adequação ao
conteúdo da obra. O narrador indefinido nutre empatia pela personagem e tem
sobre ela comprovável omnisciência.
Mauriac caracteriza directa e indirectamente a condição precária da sua
personagem. Desde o casamento que o léxico utilizado apresenta pejoração:
“fugir”, “horrível”, “enganador”, “gaiola”, “pocilga”, “ensombrada”...
Em entrevista à Paris Review (The Art of Fiction nº 2), em 1953, o autor
revela o que o leitor mais atento rapidamente percebe: Em “Thérèse
Desqueyroux”, a analepse tem importância vital na narrativa. A personagem
principal faz a viagem do tribunal até casa, onde está o seu marido, recordando
os passos em falso que foram dados até ficar numa situação de dependência da
ordem (social, legal). A tensão vai aumentando conforme ela se aproxima da
tentativa de homicídio e, em simultâneo, da casa onde o seu marido está em
convalescença.
A partir de um acontecimento verídico, o autor francês fez de uma mulher
real o protótipo da sua criação literária. As crónicas que inspiraram esta obra
escandalizaram a sociedade da época e marcaram o autor.
A estrutura dual do livro é composta por um universo primário ou real e um
secundário ou ficcional. A transposição de um para o outro e a intersecção
entre elementos constrói o universo da obra de Mauriac. Nesse jogo de
correspondências, o autor edifica a sua história e, principalmente, a psique de
Thérèse. As fissuras existentes entre a rigidez moral da família e a simples
verdade são analisadas pela ficção.
Ainda na mesma
entrevista, o autor afirmou “i revive within myself the atmosphere of my
childhood and my youth - i am my characteres and their world”. Remetendo, assim, para
outra personagem além de Ana Karenine: Madame Bovary.
A intertextualidade entre as obras de Flaubert, de Tolstoi e a obra-prima
de Mauriac é evidente na temática e na construção da principal personagem.
A história, as técnicas narrativas, a composição emocional de Thérèse, a
frase trabalhada até ser uma “elegante fórmula” fazem de “Thérèse Desqueyroux”
um dos grandes livros de 2015.
Mário Rufino
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=773472
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