“Hoje preferia não me
ter encontrado”
Herta
Muller (Prémio Nobel 2009)
D.
Quixote
“Não queria pensar em
nada, porque mais nada sou, para além de intimada” pág. 47
Em
“Hoje preferia não me ter encontrado”,
Herta Muller interroga tudo, de forma dura e sem piedade, não se colocando no
exterior do objecto de análise. Todos são vítimas e culpados da alienação da
liberdade individual. Os vigiados também vigiam e os vigilantes têm medo de ser
vigiados.
O
“eu” narrativo permite a aproximação
dos acontecimentos narrados à dor e experiência própria da autora. Herta
Muller, romena e nascida numa comunidade de língua alemã, esteve sob o regime
fascista de Antonescu e, posteriormente, sobre o regime comunista de Estaline.
A própria mãe da autora foi deportada, juntamente com cerca de 80 mil romenos
de língua alemã, para um campo de trabalhos forçados.
A
narradora viaja sentada num eléctrico com destino a mais um interrogatório.
Enquanto o eléctrico avança, a sua memória recua e revela segredos e
recordações mais ou menos distantes.
No
decorrer da leitura percorremos círculos concêntricos em torno de um sentimento
de desagregação humana, seja na sua individualidade ou sociabilidade.
A
beleza é deturpada e destruída: Albu, o interrogador, beija-a na mão deixando
um rasto de cuspo enquanto lhe aperta os dedos até ela quase gritar de dor; na
foto do casamento com Paul, os dois estão de cabeça encostada, num dia feliz,
mas no presente mais lhe parecem as duas ameixas, símbolo da aguardente com que
o marido diariamente se embebeda.
As
ligações familiares incluem o seu ex-sogro,
um “comunista perfumado”, que deportou os avôs dela e nacionalizou os
respectivos bens, o desejo erótico pelo seu pai e o decadente casamento com
Paul que se autodestrói devido ao álcool.
O
“comunista perfumado” afirma que o tempo em que os avós dela passaram dentro de
uma campo de detenção já lá vai e que são somente desculpas para não terem
vencido na vida. A ironia de se “ouvir” deste personagem uma frase baseada no
“darwinismo social” e tão ligada ao capitalismo exemplifica a presença
constante da ironia em “ Hoje preferia
não me ter encontrado”
O
presente fecha qualquer esperança e tenta enterrar e branquear um passado de
dor. A memória, essencial ao património cultural da sociedade e do indivíduo, é
pressionada pelo esquecimento. Herta Muller luta pela manutenção da memória,
contra a paranóia e a loucura.
Já
divorciada do primeiro marido e em casa de Paul, ela pergunta-lhe o que é um
comunista.
“Quem era
suficientemente pobre tornava-se comunista. E também muitos ricos, que não
queriam ir para os campos de trabalhos forçados. Agora o meu pai [fascista e,
posteriormente, comunista] está morto e, tão verdade como o céu existir, lá em
cima ele diz que é cristão.” Pág.173
Ela
e Paul são despedidos por práticas subversivas contra o Estado. A deterioração
económica acentua-se.
“Aquilo de que precisam
eles [os russos] mandam despachar para Moscovo e empanturram-se com o nosso
cereal e a nossa carne. A fome e a porrada eles deixam para nós.” Pág. 29
Apesar
de a desconfiança estar enraizada devido a questões histórico-políticas (fascismo
e comunismo), alguns elos afectivos ainda prevalecem. Lilli, amiga e colega de
trabalho da narradora, é a única pessoa, além de Paul, em quem ela confia. No
entanto, ela é assassinada a tiro e esventrada pelos cães quando, motivada pelo
amor a um homem, tenta ultrapassar a fronteira com a Hungria. A presença rara
destas relações sublinha a substituição do afecto pela desconfiança e paranóia
entre as pessoas.
A
sociedade está dividida entre ostentação e pobreza, onde as classes sociais
mais desfavorecidas sofrem com o flagelo do álcool, e a liberdade de expressão
não passa de um conceito impraticável.
“O nosso
socialismo até põe os seus trabalhadores a sair da indústria em pelota…” pág.
86
A
vida, a rotina diária, é pesada e os dias arrastam-se uns atrás dos outros.
“ Seria pedir de mais
que as coisas a que me habituei me servissem de alguma coisa. Elas até servem
de alguma coisa, mas não a mim. Quer dizer, servem quando muito à vida, a
vencer o dia. Mas não se espere que elas nos encham a cabeça de felicidade”
Pág. 24
A
redução do humano ao seu instinto animal é sublinhada no episódio da feira da
ladra, dia em que conhece Paul, onde muita gente precisa de usar uma decrépita
casa de banho pública. O polícia encostado à parede abdica de exercer
autoridade perante a desordem. E a ansiedade domina as pessoas que esperam para
entrar no pútrido cubículo. A avaliação da narradora é mordaz.
“Só lá fora voltei a
ser um pedaço de esterco humano” Pág. 144
“Hoje
preferia não me ter encontrado” é um texto pleno de ironia, despido de
autopiedade e muito crítico em relação a ideologias, à sociedade dessa altura e
ao próprio indivíduo.
Herta
Muller não poupa nada nem ninguém.
“Neste entardecer
vermelho da cidade, o que agora se recomenda é a cegueira, há olhos de vidro
para todos. Mas os pregos do caixão troam especialmente por aqueles que querem
construir a sua felicidade dançando ao som de uma canção em que a gente se
farta do mundo.” Pág. 117
Mário
Rufino
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