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“Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”








“Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”
J. Rentes de Carvalho
Quetzal



I
“O caso do senhor Mandel acabou por se fundir na minha memória (…) Alguns factos que inventei tornaram-se «verdade» à força de repetições.” Pag. 126

“Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” é composto por 30 narrativas escritas com a mestria de quem sabe contar bem uma boa história. J. Rentes de Carvalho surpreende-nos com a sua ironia queirosiana e com a fluidez de uma prosa equilibrada, que transmite a sensação de que tudo o que é necessário está em cada frase, em cada conto, na proporção exacta.
 Se partirmos para uma análise por decomposição dos contos
(estudo fónico, das personagens, da acção, do espaço, etc.), podemos afirmar que a temática, dadas as características inerentes a uma compilação de narrativas curtas, é plural. Seguimos histórias de amor e adultério (“Um amor em Sevilha”), origem e exercício de autoridade (“Lord William”), crime passional (“A prisão nova”), contrabando (“o outro lado da paisagem”), sobrenatural (“Os medos de então”) e muito mais.
 As narrativas não se limitam a uma área geográfica. J. Rentes de Carvalho, usando as suas próprias experiências pessoais e profissionais, coloca acção a decorrer em Lisboa (em “O incêndio de Lisboa” diria mesmo que Lisboa é a personagem principal), no Brasil (para onde foi viver por razões políticas), no Norte de Portugal (onde nasceu e viveu), na Holanda (onde vive desde 1956. Foi docente na Universidade de Amsterdão), Paris e Nova Iorque, onde viveu durante algum tempo. No aspecto lexical, esta experiência faz-se notar em diversos diálogos com personagens oriundas do Brasil. Nesta situação, ele credibiliza a narração manipulando o léxico e sintaxe das frases quando assim é necessário.
“- Que besteira é essa de quatro dias que você continua falando? Duas horas, rapaz! Eu mando o avião te pegar e ele te deixa mesmo diante da porta. Tem pista.
Assim aprendi que, usadas por um mortal de bolsa modesta ou um multimilionário, as mesmas simples palavras com que convida alguém para almoçar encerram mais do que a diferença entre dois mundos” (Gente de outro planeta, pag.297)
Em “Gente de outro planeta” é feita uma análise mordaz sobre as desigualdades sociais e a consequente modelação dos valores morais: “E não me refiro ao conforto nem às facilidades que o dinheiro compra, mas a todo um comportamento e sistema de valores que só em aparência tinham alguma coisa de comum com os do mundo em que a minha vida decorria” pag. 298
“O incêndio de Lisboa” talvez seja o que detém mais memórias pessoais e menos ficção. O narrador é o próprio autor. Não se “esconde” atrás de nenhuma personagem. Como foi dito anteriormente, Lisboa é a personagem principal. Ao contrário de muitas outras histórias neste livro, a geografia não contextualiza, somente, o enredo. Lisboa é o que o ele quer contar. A narração é substancialmente diferente. Aproveitando a deambulação pela cidade o autor caracteriza-a em diversos períodos temporais e faz questão de mencionar o quanto valoriza Eça de Queiroz: “Nos jornais e em todos os livros de Eça- o maior dos nossos romancistas, nessa altura para mim um deus e hoje ainda longe o meu favorito – o Chiado resplandecia, era único” pag.307 
A fronteira entre a realidade e a ficção dilui-se até quase à inexistência, não fosse a memória ser mutável com o tempo. O autor refere-se ao seu primeiro romance e, desta forma, sublinha o seu próprio papel dentro do enredo: “ O meu primeiro romance, Montedor, acabava então de ser publicado…” pag. 311
Esta dialéctica entre a realidade e a ficção é permanente. Se analisarmos, por exemplo, “O caderno de Hakim” poderemos detectar mais uma referência a entidades ou pessoas que, de facto, existem. Hakim, homem dotado de adivinhação, afirma que Gabo viria a ser ainda mais conhecido do que Sartre (à época o autor mais conhecido). Ao gritar para Gabo que ele viria a ser muito conhecido, “Gabo respondeu com um gesto obsceno e continuou a ler o jornal” pag.227
Gabriel Garcia Marquez (Gabo) passou a ser um personagem real dentro da ficção.
A unidade entre os vários e diferentes textos é conseguida através dos recursos estilísticos utilizados, pela dialéctica entre ficção e realidade e pela prosa contida e equilibrada. J. Rentes de Carvalho consegue contar de forma irrepreensível. A conjugação dos elementos anteriormente analisados por decomposição é concretizada de forma homogénea. Por vezes parece que ele está ao nosso lado, sentimos que nos conta tudo como se estivesse a falar connosco.

II

Se há género literário em que o título se destaca, então é o conto. Principalmente quando, numa colectânea, o título do livro remete para ele.
Segundo Armando Moreno (1987)[i], “O título de um livro deve funcionar assim como uma palavra plurissémica, contendo os principais traços semânticos de cada conto e sendo, simultaneamente, uno e vário, signo de cada conto e signo dos contos reunidos”
No conto “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” existe uma ligação imediata entre a apresentação e o desfecho. Os limites deste género narrativo são traçados com exactidão. “Os Lindos Braços de Júlia da Farmácia” apresenta-se como acção selectiva e sem dispersão e tudo (inclusive o título) está ligado à acção principal.
No entanto, J. Rentes de Carvalho, noutros contos, flexibiliza as características próprias de uma narrativa curta quando informa que não poderá fugir ao facto de ter de utilizar vários pormenores, que, por motivos de objectividade, não fazem parte do conceito de conto. Se em “ um amor em Sevilha” afirma que “ mau grado a riqueza de detalhes com que em geral acompanhava as recordações, neste caso particular, a sua narração era sóbria e breve, quase como se tantos anos depois, ainda lhe fosse doloroso pôr no retrato mais do que estritamente essencial” pag.9 já em “ Le Beuret” afirma algo diferente: “ certas histórias, mesmo comezinhas, só se podem contar de maneira satisfatória quando se lhes acrescenta um luxo de pormenores. A compreensão de outras necessita do apoio de referências: data, momento histórico, circunstâncias, antecedentes…Em vez da meia dúzia de folhas planeadas enche-se com elas um caderno” pag.29
Conhece as “regras” e não hesita em manipula-las e transgredi-las com segurança.
Sabemos que utilizou muitas experiências pessoais na construção dos seus textos, mas ele não se limita ao realismo. É o realismo real?
Em “Le Beuret”, aproxima-se o mais possível do realismo, do mundano: “Mais adiante contarei como era meu hábito diário pedir a monsieur Antoine « un grand créme er un croissant beurre, s`il vous plaît» Seria estranho escrever, recorrendo aos dicionários: « Senhor António, faça favor de me dar uma xícara grande de café com leite e um pãozinho (ou bolo) amanteigado em forma de meia-lua». Além de não parecer a mesma coisa e fazer rir, até o cheiro e o sabor se tornariam outros na imaginação do leitor» pag.29, mas em “Os medos de então” interroga-se sobre os limites desse mesmo realismo: “ Na minha infância o sobrenatural ainda existia e amedrontava (…) O mundo era maior do que é hoje” pag. 88
A dialéctica entre o artifício e a realidade não se esgota aqui. Em “A quinta do Mobutu” é demonstrada a “promiscuidade” existente entre ambos. O artifício não elimina a realidade. Enquanto o narrador volta a casa, à aldeia onde cresceu, e sente que a memória é traída pelo presente e a realidade não encaixa com o que ele recordava daquele local, o “velho” quer ouvir as histórias sobre tudo o que se passa no exterior, nas cidades. Aqui é demonstrado o quão pouco fiável pode ser o narrador: “ Pensei desiludi-lo, mas quando o vi assim prostrado na cadeira de encosto, os olhos semicerrados, já a gozar, pareceu-me que seria crueldade. E então fantasiei-lhe deboches, bordéis de luxo, ruas de pecado como em parte nenhuma existem” pag. 166

Não se pode deixar de referir uma das principais riquezas deste livro: a capacidade de transformação por parte de quem conta.
Opta-se, raras vezes, pela narração na 3ª pessoa do singular (ou não-pessoa, segundo Benveniste). A narração é concretizada num “eu” que ouviu ou assistiu directamente ao que vai contar. A adopção desta técnica literária permite ao autor manipular com brilhantismo a hibridez da identificação do narrador e conjugar o artifício com a verosimilhança.
A característica que talvez mais impressione é a incerteza na identificação da voz narrativa (discurso indirecto livre). Muitas vezes não sabemos quem narra. A narração acomoda-se à personagem, cola-se a ela e a voz do narrador adapta-se à forma de pensar e falar da personagem. Esta “terceira pessoa próxima” é um pacto íntimo entre os dois. Esta situação acontece em várias histórias e é executada com mestria. Se em alguns casos é muito difícil identificar o narrador, existem outros onde existe auxílio: “Ou pelo tom sigiloso, pelo seu modo expressivo de narrar, ou pela minha natureza excessivamente impressionável, o certo é que no momento em que o senhor Pontes começa a descrever a sua entrada na casa do morto, a barbearia e o cliente deixam de existir, eu deixo de ser eu próprio. As palavras que ouço são as que digo, no meu cérebro há uma amálgama de pensamentos alheios, observações, memórias de uma vida diferente, sinto no corpo o cansaço de muitos anos” pag. 334

III

José Rentes de Carvalho tem controlo absoluto sobre as técnicas narrativas que aplica na arte de contar. A leitura é fluida, não existem perdas de sentido, malabarismos estéreis nem petulância no léxico utilizado.
Há momentos de brilhantismo.
Arrisco em dizer que esta obra não é somente (?) um belíssimo livro onde coexiste a narrativa e a poética; é uma lição de bem escrever.
Em suma, deve congratular-se a Quetzal Editores por divulgar em Portugal um escritor exímio, que trabalha os textos até atingir o equilíbrio (quase) perfeito. Fica a alegria de sabermos que há muito mais para ler deste autor.

Mário Rufino




[i] MORENO, Armando (1987) “ Biologia do conto”, Livraria Almedina, Coimbra

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