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O Espelho e a Luz, de Hilary Mantel

 






O poder alimenta-se de sangue.

 

Sobreviveu às tareias dadas pelo pai, ascendeu aos mais altos cargos do reino, caiu em desgraça.
Eis Cromwell contado por Hilary Mantel. “ O Espelho e a Luz” mostra-nos como o poder é efémero.

 


Quando o leitor entra num texto com a dimensão de “O Espelho e a Luz” tem consciência de ter uma pausa longa na sua realidade. Durante essa viagem por um tempo histórico muito longe do tempo em que o seu corpo interage, o leitor experimenta- teoricamente- curiosidade (por costumes e figuras históricas), êxtase (pela descrição/dramatização de momentos fulcrais da História), mas também tédio e abstracção. Por outras palavras, entedia-se e distrai-se, como se de uma conversa em pano de fundo se tratasse. 
Um livro com 875 páginas leva-nos para uma realidade onde ficamos durante muito tempo. Sendo, como neste caso, pertencente a uma trilogia, implica um compromisso do leitor em viver numa época diferente, entre pessoas desconhecidas e alienado da realidade em que as suas acções implicam um efeito. E tal como na vida real, por vezes o tédio toma conta dele. Se este tédio foi um objectivo de Hilary Mantel, uma estratégia para entrar na vida, por vezes enfadonha, de Thomas Cromwell, então o resultado é de excelência. No entanto, ao fazê-lo empurra muitas vezes o leitor para fora do texto. Há tanto que se perde por causa do tom monocórdico.
O capítulo final da trilogia é uma máquina construída com atenção a cada peça, numa obsessão pelos pormenores e pelo desenvolvimento em passos lentos da personalidade dos seus avatares, principalmente de Thomas Cromwell.
 
O compasso é longo e a sucessão de tempos dentro da narrativa é executada com o vagar de quem procura tanto quanto possível estender o prazer em estar nesta companhia. A marcação do tempo e o andamento transmitem a sensação própria de um voyeur a acompanhar a vida de um vigiado. Em grande parte da narrativa observa-se a banalidade, aqui e ali pontilhada por momentos disruptivos. E é isto que falta na prosa da vencedora do Booker (duas vezes, ora com “Wolf Hall”, ora com “O Livro Negro”). As disrupções na prosa são escassas; mantém-se o mesmo ritmo, quase sem oscilações. 
A britânica Hilary Mantel propõe ao leitor que acompanhe Thomas Cromwell durante  1971 páginas divididas em 3 volumes: 
Wolf Hall” (Civilização, 658 páginas), “O Livro Negro” (Civilização, 438 páginas) e “O Espelho e a Luz” (Editorial Presença, 875 páginas). 

A trilogia começa com a incessante obsessão de Henry VIII por um herdeiro masculino. A fraqueza e volatilidade do sexo feminino – segundo o rei- não permite que uma mulher ocupe o trono depois da sua morte. Nessa demanda por um filho e por alianças políticas, Henry VIII viria a casar seis vezes.
Em “Wolf Hall” acompanhamos os tempos áureos do cardeal Wolsey, como conselheiro do rei. O falhanço em cumprir a tarefa de conseguir o divórcio para o rei viria a provocar a sua queda. Cromwell é apresentado como secretário de Wolsey e a sua ambição denota-se na habilidade para manipular pessoas e aproveitar ocasiões. Estamos em 1520.
Em “O Livro Negro”, assistimos à ascensão de Cromwell e à descida de Anne Boleyn até ao seu violento destino. Estamos na década 30 do século XVI. O destino dos dois são antagónicos, embora andem a par. Anne Boleyn é decapitada por pretenso adultério após o rei se apaixonar por Jane Seymour. E é logo após o momento de decapitação que começa o último capítulo da trilogia.
O segundo volume da trilogia já havia deixado pistas para o último. Mantel afirma na última página de “O Livro Negro”:

“Não há fins. Quem pensar que há está iludido quanto à sua natureza. São tudo começos. Aqui está um”.

“O Espelho e a Luz” estende-se entre Maio de 1536 até Julho de 1540.
Mais 875 páginas a acompanhar a vida de Thomas Cromwell, um “faz-tudo” que vai subindo na vida até ser um dos homens mais temidos na época de Henry VIII, da dinastia Tudor: 

“Apesar de ainda ser um plebeu, a maioria das pessoas concordaria que ele é o segundo homem mais importante da Inglaterra. É o representante do rei para as questões da Igreja. Tem licença para investigar em qualquer departamento do governo ou da casa real. Carrega na sua mente os estatutos da Inglaterra, os salmos e as palavras dos Profetas, as colunas dos livros contabilísticos do rei e a linhagem, a quantidade de hectares e os rendimentos de todas as pessoas importantes de Inglaterra. É famoso pela sua memória (…) As únicas coisas de que ele não se consegue lembrar são aquelas de que nunca teve conhecimento.”






 

As obsessões e violentas diatribes de Henry VIII, a rivalidade da família Tudor com a Casa de York, a morte de Catarina de Aragão e de Anne Boleyn, o confronto com Roma e o seu bispo são acompanhados, primeiro, e geridos, depois, pela mestria maquiavélica de Cromwell. Tal como Maquiavel, seu contemporâneo, Cromwell geria a corte como ela era e não como uma imagem idealizada pela plebe. Tal como Maquiavel, Cromwell não mentia; fazia política. Sabia movimentar-se pelos bastidores do poder e entre a súcia que ocupava os corredores palacianos graças a um conhecimento empírico dado por uma vida atribulada e até trágica. A sua vida é obscura, mas sabe-se que a ascensão começou ao serviço do Cardeal Wolsey e prosseguiu ao ponto de ser nomeado de Lorde e ganhar fama entre a plebe: 

 “Como é que alguns poemas contra Cromwell, cantados numa rua em Falmouth, são replicados no dia seguinte em Chester? Quanto mais se distancia de Londres, mais estranho se torna Cromwell. Em Essex é um trapaceiro intriguista, um blasfemo e um judeu renegado. Espalhem-no um pouco mais para leste, para Lincoln, e ele é conhecido por saber tudo sobre venenos. Nos vales de Yorkshire, ele é um mago, com as estrelas e a lua no seu casaco, enquanto em Carlisle, ele é um vampiro que rapta crianças e devora os seus corações.” 
O caminho foi longo e Mantel foi meticulosa a percorrê-lo.
Cromwell nasceu pobre num lugarejo chamado 
Putney. Na década 20/30 do século XVI, entra no parlamento e demora pouco até ser agraciado pela atenção do rei e entrar no seu círculo mais íntimo. Antes disso, perdeu a sua mulher e as suas duas filhas para a “doença da febre”.
Cromwell, como principal conselheiro de Henry VIII, foi “corner stone” da Reforma, fundamental na implementação do Protestantismo no Reino Unido. 
A contenda com o bispo de Roma foi sendo cada vez mais incisiva até as ideias de Martin Luther e John Calvin se emanciparem do catolicismo e fundarem um dos três principais ramos do cristianismo.
A inconstância emocional do Rei provocaria o génesis de uma nova igreja em Inglaterra. O Papa negaria a pretensão do rei em se divorciar de Catherine, o que o levou a afastar-se do bispo de Roma. A excomunhão do Rei causaria o surgimento da Igreja Anglicana. Já longe ia o ano (1521) em que Henry VIII fora considerado defensor da fé pelo Papa. Estes factos históricos são âncora para a imaginação da autora.





Se um livro nos leva para uma época histórica, se nos leva para tão longe do nosso tempo, o que nos leva a ler ficção em vez dos descritivos e mais objectivos livros de história? 
A liberdade ficcional permite explorar a psique de cada um dos personagens. O que a história não demonstra, a ficção desenvolve. Não é por mera inocência que Hilary Mantel estrutura “O Espelho e a Luz” em diálogos entre personagens, intercalados com poucos solilóquios do narrador. 
A autora cria a ilusão de estar a escrever por dentro da acção, de estar sentada a ouvir os diálogos para os registar, sempre sob o prisma moral de Cromwell. Para isto muito contribui o trabalho sobre a linguagem, cujas características envolvem a imaginação do leitor no século XVIII.

Mantel abandona a metáfora e provavelmente os jogos fonéticos para alcançar a eufonia. Acreditamos, pois estamos perante uma tradução (trad. Beatriz Sequeira). A linguagem não é de tom poético. A autora concentra-se em colar a palavra à pele, ao seu sentido primário. Os matizes do discurso estão no confronto entre discurso público e privado, entre hipocrisia e honestidade. E aqui Mantel encosta-se à excelência. No entanto, mesmo abandonando a metáfora, a palavra é infiel a este princípio quando é utilizada com ironia. 
A linguagem e a cenografia transportam o leitor para a época. A tradução respeita a segunda pessoa do plural, credibilizando o discurso. Mas até aqui o texto parece provocar algum cansaço. Numa tradução, até então, sem grandes sobressaltos, somos confrontados com erros imprevistos:
Está uma noite calma, não se houve qualquer som vindo do rio...”
 Há redundâncias na narrativa que poderiam ser evitadas segundo o princípio da economia. A descrição da abundância de produtos de determinada região serve para contextualizar o leitor e- mais uma vez- credibilizar a 
acção. Resulta, mas é escusado repetir a mesma estratégia narrativa quando volta a descrever a mesma região.  

Um texto longe de ser lépido ganharia que se lhe encurtasse a vida, como Henry VIII fez a Cromwell, em cerca de 300 páginas. Ganharia em pungência, ficaria livre de excessos e nada perderia o leitor na evolução histórica da época nem sobre as metamorfoses emocionais dos personagens. 
Um ritmo demasiado lento, um tempo demasiado longo. Talvez seja diferente para quem nutre indefectível interesse pelos romances históricos, especialmente se forem sobre acontecimentos na época dos Tudor.
No entanto, não deixa de haver universalidade na mensagem. O poder mantém as suas características, seja em que época for.
Não há reino nem república sem o seu Cromwell, sem as suas peças embriagadas pelo poder.
 “Algures - ou talvez nenhures – existe uma sociedade governada por filósofos. Eles têm as mãos limpas e os corações puros. Mas, mesmo na metrópole da luz, existem pilhas de estrume e esterqueiras, pejadas de moscas. Mesmo na república da virtude, é necessário um homem para limpar os dejetos com uma pá, e algures está escrito que o nome dele é Cromwell.”
O menino de Putney, formado com constantes tareias pelo pai, ascendeu do nada até ser ouvido pelo rei, considerado por Cromwell como o espelho e a luz de outros reis. Tal como Tom Verdade vaticinou, o rei iria odiá-lo tanto pelos seus êxitos como pelos seus fracassos.
Na trilogia de Hilary Mantel a ficção está ao serviço da verdade. Graças a isso, o leitor conhece ao pormenor Thomas Cromwell.
Um livro ambicioso, com mais qualidades do que defeitos.



https://observador.pt/2020/10/31/o-espelho-e-a-luz-e-a-exigente-ambicao-de-hilary-mantel/

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