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«Arde o Musgo Cinzento»: para além de uma simples história de incesto e crime

O meu texto, no Diário Digital, sobre "Arde o Musgo Cinzento" de Thor Vilhjálmsson

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=582865

«Arde o Musgo Cinzento», de Thor Vilhjálmsson, em boa hora editado por Cavalo de Ferro Editores, situa-se na obscura fronteira entre a fantasmagoria e o tangível, entre a memória dos mortos e o futuro próximo, entre o sentimento e o raciocínio.

A génese do enredo remonta ao século XIX, período adjectivado de Romântico ou Romântico tardio. A figura de Ásmundur, magistrado e poeta, baseia-se numa figura real. A própria história de incesto e infanticídio encontra-se registada nos anais judiciais da Islândia. Partindo daqui, o autor islandês Thor Vilhjálmsson projectou uma nova luz sobre os factos, criando, assim, uma ficção que assume as vozes do passado (o género poético islandês Rímur; as sagas, os mitos), uma ficção onde existem ressonâncias de outros autores e onde coexistem – uma das principais riquezas deste romance - enfoques plurais e divergentes.
«Arde o Musgo Cinzento» é muito mais do que uma história de incesto e crime. Os temas do incesto e infanticídio, por si só, não oferecem novidade. «Medeia» é um clássico exemplo. O que faz deste livro uma obra interessante é a desmistificação do romantismo perante a tangibilidade do real, é a abertura da palavra na poesia ante o fechamento e definição da palavra na Lei (Magistrado), é o Amor (meios-irmãos) diante das convenções sociais.
A acção central (crime) é, desta forma, contextualizada pelo confronto entre valores divergentes. O misticismo presente na acreditação de figuras como elfos e bruxas é confrontado com o avanço científico (Razão) e religioso (Moral). A coabitação contraditória entre paganismo, ciência e religião age, como agente transformadora, sobre as personagens que deambulam solitárias no espaço e perdidas no tempo. Ao optar por aproximar a voz narrativa a diversas personagens, o autor possibilita a pluralização de perspectivas conforme a evolução do enredo. A interpretação não se encerra na univocidade. O leitor tem a possibilidade de usufruir da capacidade de Thor Vilhjálmsson em adaptar as características estilísticas ao que é pretendido por cada acção (relatórios do tribunal, introspecção do poeta-magistrado, descrição de locais…) e respectiva adequação do vocabulário (de cariz bucólico nas paisagens ou técnico no que se refere ao tribunal).
O autor, ao longo da estrutura fragmentada e elíptica da narrativa de «Arde o Musgo Cinzento», não se detém perante o irrealismo natural da região, não idealiza o meio onde as personagens se movimentam, não se esgota num romantismo caricatural, e insere no argumento a relação entre Homem e o Ambiente. A inóspita paisagem é uma perspectiva sobre a alma de uma entidade colectiva composta por muitas gerações:
«Toda essa população de mortos que este povo arrasta consigo, geração após geração, pelos séculos dos séculos» (pág. 117)
O diagnóstico das causas conexivas entre Contexto (social, ambiental) – Acção (crime) -reacção (punição) é entregue à Moral (vigário) e à Lei (magistrado). E ambas não se conjugam.
«Deus é amor. E quando emitirmos os nossos juízos, por muito que nos apoiemos nas leis da nossa pátria e nas convenções sobre as quais erigimos a nossa comunidade, o que convencionámos chamar sociedade ou nação, reino ou como queiramos chamá-lo, então não nos regozijemos nos nossos corações pelo que acontecerá àqueles que rechacem os nossos juízos…» (pág. 216)
Quando se chega ao fim do livro, a pergunta impõe-se:
Afinal, quem é que cometeu um crime?

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