Texto: Mário Rufino
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?section_id=4&id_news=536150
«O Quarto de Jack», de Emma Donoghue e editado pela Porto Editora, é um
microcosmos para quem suporta o fardo do conhecimento (a mãe) e o Universo para
quem ali nasceu e vive abençoado pela ingenuidade. É, tal e qual a autora
mencionou nesta entrevista, a história de uma queda (curiosa associação a um
movimento descendente) desde a ignorância até ao conhecimento. Jack come a maçã
que a mãe lhe dá enquanto conhece pela voz dela que há um mundo lá fora muito
mais vasto, muito mais interessante do que aquele quarto. E, a partir deste
momento, a consciência de Jack jamais será a mesma.
A história fundamenta-se na dialéctica entre luz e sombra, mal e bem,
ficção e realidade, na decadência física da mãe em contraste com o crescimento
do filho. A tensão causada pelo antagonismo de situações e emoções díspares é
mantida, com sucesso, desde o princípio até ao fim do livro. Numa prosa onde só
há espaço para o essencial, Emma Donoghue afasta os vícios académicos e
constrói um texto emotivo, sem cair no facilitismo melodramático.
Alienados do exterior por um acto do raptor, mãe e filho dependem do
conhecimento de uma senha, um número secreto que possibilite saírem. O
conhecimento abrirá a porta.
O leitor sente a angústia de cada visita do raptor e quase deseja que Jack
se mantenha ingénuo perante tais atrocidades. Mas com a idade o conhecimento
cresce e a ingenuidade diminui. Tudo é um jogo de perdas.
A criação de um conjunto de regras, dentro do Quarto, possibilita-lhes a sã
convivência e a instalação de um instinto de sobrevivência que vai manter a mãe
viva e com esperança de se salvarem. No entanto, a incompatibilidade com as
regras sociais não acontece dentro do «Quarto», mas no «Espaço Lá Fora».
Emma Donoghue criou uma obra onde se interroga sobre a angústia que vem com
a perda de inocência, o conhecimento como porta de entrada, o amor como suporte
da vida e o horrível como parte integrante do Ser Humano.
Como ela afirma na entrevista concedida ao Diário Digital, «como mãe, eu
estou constantemente consciente que parte do meu trabalho é contar mentiras aos
meus filhos».
Porque decidiu narrar a história pelo ponto de vista de Jack? Teve sempre a
ideia de construir a narrativa desta forma? O que mudaria se contasse, por
exemplo, pela perspectiva da mãe ou de uma 3.ª pessoa ?
Pedir a tal criança (não somente com 5 anos, mas também alienada do mundo exterior) a sua própria história foi a ideia e objectivo de «O Quarto de Jack». Se tivéssemos outra personagem [a narrar] teria sido produzido um estudo muito mais banal do sofrimento e do Mal.
Já perto do fim do livro (pág. 304 na edição portuguesa) simula um debate
televisivo entre académicos sobre Jack. A primeira interpretação foi de estar a
dar uma chave de leitura para o romance. Depois pensei que podia estar a
criticar com ironia qualquer abordagem mais intelectual. Esta é a história de
Jack ou posso dizer que esta pode ser a nossa história, como humanidade,
também?
Você acertou. Estou a satirizar os intelectuais (pelo seu usufruto algo frio da história de Jack como uma parábola, pela sua competitividade abafada e o vício pelo jargão), deixando-os sugerir algumas interpretações muito interessantes sobre o que se passava no Quarto. Esta breve cena foi a minha forma de pelo menos sugerir alguma leitura e raciocínio que eu fiz acerca dos principais temas do romance e que não podia ser assumida pela voz de nenhuma das personagens principais. Eu sempre gostei de brincar com os académicos, pois eu sou filha de um, parceira de outra, e eu própria fiz um doutoramento em Literatura!
No entanto, a primeira impressão que tive foi de alienação do mundo
exterior e aprisionamento dentro do livro. Eu estava dentro do «Quarto». Na
edição portuguesa podemos ler «Somos como pessoas num livro e ele não deixa que
ninguém leia». Pareceu-me um jogo de sombras como em «A Caverna», de Platão.
Podemos nós, como indivíduos ou mesmo como sociedade, ser tão limitados na
análise sobre nós mesmos quando fora da «zona de conforto»?
Eu quis que os meus leitores lidassem com questões existenciais (o indivíduo vs. ligação em par vs. sociedade, natureza [de algo/de alguém] vs suporte [carinho, apoio], a realidade vs. a ficção, o pequeno vs. o grande) numa forma muito concreta durante o curso de uma história que fosse interessante para eles. «O Quarto de Jack» é uma espécie de «zona de desconforto»: eu tentei manter o tom desconfortavelmente equilibrado entre o claro e o escuro, o confortável e o horrível, em cada página.
A dialéctica entre a realidade e a ficção percorre todo o livro. Há uma
alteração radical da ordem de tudo (como em «Alice no país das maravilhas»).
Para Jack, a ficção é o «Espaço Lá Fora». Por outro lado, para a mãe é o
oposto. A certo ponto lê-se: «As histórias são um tipo diferente de verdade». A
nossa realidade é limitada pelo que lemos?
Um crítico britânico chamou à queda da inocência de Jack uma revolução Copérnica, como descobrir que o mundo é redondo. Sendo uma ex-católica, eu vi-a como uma Queda Bíblica, como Adão e Eva, e é por isso que a Mãe oferece uma maçã quando confessa que ela vem do «Espaço Lá Fora». Há uma grande excitação que vem com o seu [Jack] novo conhecimento, mas uma grande perda também. Como mãe, eu estou constantemente consciente que parte do meu trabalho é contar mentiras aos meus filhos: ficções simples, reconfortantes e encorajadoras que moldam para eles o mundo doido e encoraja-os a enfrentarem os seus desafios. Por exemplo, eu tenho muito medo do primeiro Natal em que eles deixarão de acreditar no Pai Natal…
De certa forma, é uma tarefa do escritor revelar e/ou esconder o que se
pode ver no mundo que ele/ela cria? Que poder tem como escritora?
Um grande poder, mas não absoluto. O livro sai para o mundo como uma criança e o escritor não tem mais controlo sobre o que acontece com ele…
Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
Room by Emma Donoghue
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