“A Arte de Chorar em
Coro”
Erling Jepsen
Eucleia Editora
“ Este é o destino que
me calhou, penso, ser o responsável por equilibrar um pouco as coisas” pag.66
A
Verdade para o rapaz de 11 anos que nos conta a sua história reside no espaço
entre o facto e a observação do mesmo. Esse espaço, que podemos nomear de
interpretação, é moldado pelo hábito. E esta é uma palavra-chave para a
compreensão de “ A Arte de Chorar em
Coro”.
A
dinâmica comportamental da família (composta pelo rapaz, a irmã adolescente
Sanne, o irmão mais velho Asger, o pai e a mãe) é analisada através da
ingenuidade infantil do nosso narrador e de acordo com o comportamento padrão/
hábito que conhece desde que tem memória.
Erlin
Jepsen mostra-nos, logo nas primeiras páginas, a perspectiva por si adoptada
para contar a história de uma família disfuncional:
Quando
a mãe tem dificuldades em definir com sucesso a palavra “hábito”, o filho diz
que o pai explicará melhor. Quando o ouve, sente-se mais seguro.
“ Levanto-me e sinto
que percebi tudo, e que qualquer coisa neste mundo é boa desde que tenha o pai
para ma explicar. O pai com as suas grandes mãos e quentes.” Pag. 13
A
satisfação do pai é o motivo de preocupação de todos. O sucesso nos negócios
(mercearia), a aceitação social (funerais) e o respeito da família perante a
figura patriarcal são os motivos que levam à acção ou apatia dos seus
elementos. No entanto, ao longo do livro vamos percebendo que as ligações entre
eles são dúbias.
Na
dinâmica familiar, as mulheres (mãe e filha) sofrem também devido à sua própria
passividade. A mãe está sempre ausente em momentos fulcrais e a filha é
definida e tratada como louca quando, na verdade, é uma vítima amarrada pelo
silêncio de todos.
As
palavras na boca do homem são opostas aos seus gestos… paternais. No entanto,
as duas vertentes têm uma consequência em comum: O choro torna-se um facto
doloroso partilhado por muitos e, em “A
Arte de Chorar em Coro”, são os lamentos não ouvidos, os gemidos por
averiguar, que provocam a maior agonia nas personagens e o maior impacto no
leitor. Os discursos fúnebres são um sucesso quantificado pelas lágrimas
vertidas. Mesmo sem conhecer bem o falecido, o pai é capaz de elevar as
hipotéticas qualidades e sublinhar a dor da ausência até ao choro convulsivo. O
objectivo é ultrapassar o esperado, chegar às pessoas com menos probabilidades
de chorar a partida do morto.
“ (…) há, por fim, um
ataque de choro, mas é o da mãe da falecida, e essa iria chorar de qualquer forma,
portanto não conta” pag. 29
Ironicamente,
devido ao dom da retórica e por conseguir sublinhar virtudes que, muitas vezes,
não existem, ele é convidado a seguir a carreira política. De acordo com o
filho mais novo, tudo corre bem quando o pai está bem. Os elogios fúnebres
promovem a ascensão social e um certo apaziguamento. Para conseguir manter a
harmonia, o narrador elabora um plano. Ele faz uma lista de pessoas a matar
para o pai continuar a fazer discursos fúnebres. Inclui-se nessa lista, mas
elimina-se pois percebe que não poderia ver o sucesso do pai caso fosse
assassinado.
A
intimidade com a sua irmã permite-lhe confessar os seus desejos de ver algumas
pessoas morrerem. Ela, no entanto, reage como se de uma brincadeira se
tratasse.
Sem
a sua ajuda, ele recorre à divindade criada por si: uma mistura do seu herói
(Tarzan) com uma proeminente figura do catolicismo (Arcanjo Gabriel).
Surpreendentemente,
as hipotéticas vítimas começam a morrer em condições suspeitas e ele pensa que
as suas preces foram atendidas.
A
polícia considera as mortes como acidentais.
O
pai e a irmã Sanne aparentam estar muito nervosos devido a todos estes
acontecimentos e à presença da polícia. Insistindo em manter a paz, o filho
aconselha-os a dormir juntos como por vezes fazem.
Ele
gosta muito de ter a mãe ao seu lado quando adormece e de saber que a irmã está
segura nos braços do pai. Sanne, contudo, não partilha esse sentimento. Quando
dorme com o pai, acorda a tremer e muito agitada. A mãe cala-se, o irmão mostra
a sua incompreensão e o pai leva-a, repetidamente, ao psiquiatra para ela levar
um sedativo.
O
incesto é um segredo muito mal guardado. Quando Asger, o irmão mais velho, vem
da cidade onde estuda para os visitar, ouve, numa conversa ao jantar, que
Sanne, a irmã, tem dormido com o pai. Todos se calam porque todos, excepto o
nosso narrador, sabem o que estava a acontecer.
“ (…) o que é isso do
incesto? Sei bem o que é uma vítima, e isso do incesto soa a algo contagioso,
como uma espécie de piolho. Não me estranharia que lho tivesse pegado o pai
depois de o apanhar no sofá da avó alemã. Oxalá não tivéssemos ficado com o
sofá, não trouxe nada para além de desgostos” pág. 76
O
livro de Jepsen não é um livro divertido. E no entanto é inevitável sorrirmos
perante tanta ingenuidade que vai diminuindo com o avançar da idade. O amor que
ele sente principalmente pelo pai (o seu exemplo masculino) resulta em
atropelos a uma moralidade que para ele ainda não existe. A bondade só é
bondade quando em si reside a sabedoria. E é o que ele não tem nem pode ter com
11 anos, apenas. É esta perspectiva tão afastada dos valores que enriquece a
narração. Como podemos julgar duas crianças (ele e a irmã) que, por apego ao
hábito e amor ao pai, cometem atrocidades com objectivo de o fazer feliz?
A
luta pela harmonia é hipotecada pela ingenuidade que não permite avaliar
correctamente os factos. O campo de interpretação é estreito porque o narrador
não tem as ferramentas necessárias para observar os acontecimentos. Erling
Jepsen consegue manter eficazmente esta perspectiva e com esta “limitação”
consegue sublinhar a já falada interpretação ingénua. Neste jogo de perdas, o
autor enriquece o texto ao adoptar o prisma de uma criança de onze anos que
demonstra, assim, a incapacidade de simbiose entre o dito e o facto. É neste
espaço interpretativo que o autor sugere, não finaliza, e deixa espaço à
dedução do leitor.
A
voz individual, com a sua dor e incompreensão, procura a validação de um coro.
Mário
Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
A Arte de Chorar em Coro by Erling Jepsen
My rating: 3 of 5 stars
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A Arte de Chorar em Coro by Erling Jepsen
My rating: 3 of 5 stars
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