Contos dos subúrbios
(vencedor do Indie Award, do World Fantasy Award e do melhor livro do Festival de Angoulême)
Shaun Tan
Editora: Contraponto
http://www.pnetliteratura.pt/cronica.asp?id=4451
Shaun Tan, com os seus “Contos dos Subúrbios” aborda a problemática saussuriana da relação entre a forma (significante) e o conteúdo (significado). Se, em verdade, qualquer texto ilustrado “pressente” a sua explícita ligação ao signo linguístico (significante + significado), o autor entende esse dilema e expõe as dificuldades existentes na ligação permanente entre forma e conteúdo.
A narrativa apresenta-se como uma radicalização da norma (ou será a palavra uma radicalização da norma?) Se a palavra escrita tem influência na memória, não afasta os problemas de interpretação. Aliás, talvez se tenha afastado ainda mais do objecto em si quando o ser humano nomeou a ideia que tem desse mesmo objecto (e não propriamente o objecto).
Ao “entrarmos” no livro deparamo-nos com uma imagem sem qualquer palavra que se refira a si própria. Podemos reparar, assim, que está mais próxima do sonho do que propriamente da interpretação realista. As palavras que efectivamente existem nesse desenho são arbitrárias: o título não tem uma ligação directa ao desenho.
Em “O Búfalo”, por exemplo, temos várias aproximações ao sentido e, desta forma, confirmamos a arbitrariedade da mensagem verbal. Se olharmos somente para o desenho, o campo de interpretação é muito mais vasto do que se lermos as palavras. Se conjugarmos as frases com a imagem, apesar de serem compatíveis, percebemos que a mensagem verbal tanto é aquela como poderia ser outra. O campo de interpretação torna-se mais estreito, mas não necessariamente mais puro.
Note-se a enorme amplitude simbólica da figura de “Touro”. A avaliação diacrónica do significante permite avaliar as suas mutações. O mesmo símbolo tem vastas e contraditórias interpretações ao longo dos séculos.#
Em “Eric” podemos ler o seguinte:
“Aqui há uns anos tivemos um universitário estrangeiro dum programa de intercâmbio a viver connosco. Tinha um nome muito difícil de pronunciar, mas ele não fez questão disso. Disse-nos para lhe chamarmos só “Eric”. Pág. 8
Terá mudado algo no “universitário estrangeiro” por ser chamado por outro nome? Não será ele a mesma pessoa? E, no entanto, a palavra que o “significa” alterou.
A tolerância em relação à diferença linguística (incapacidade de o chamarem pelo nome dado na sua língua materna) é retribuída com a tolerância cultural da família de acolhimento. O resultado só poderia ser, quando Eric parte, um belíssimo acto de conciliação de perspectivas.
Em “Brinquedos partidos” temos outra abordagem à problemática da arbitrariedade entre significante e significado:
“- Talvez devêssemos levá-lo à vizinha Más Notícias – sugeriste tu, referindo-te à senhora Katayama, a única pessoa japonesa que conhecíamos no bairro.”
A renomeação da pessoa deve-se aos actos associados a ela própria. Cada vez que um brinquedo caía no quintal dela era devolvido em bocados. Por isto, chamavam-na de “Más Notícias”
Shaun Tan# não se limita a interrogar o signo linguístico. Em “Chuva Distante” e “Comunicado dos Serviços Sociais” é a própria organização espacial da mensagem escrita que é interrogada.
“Chuva Distante” é uma pintura feita com palavras. Na “leitura” da pintura, a visão tem menos pontos de referência. Se num texto começamos de cima para baixo, da esquerda para a direita (línguas itálicas e germânicas, por exemplo), numa pintura a atenção dispersa-se mais, abrindo a visão a novas conjugações e obrigando à ruptura com o esperado. É isto que acontece nesta narrativa. Palavras dispersas, retiradas de outros textos, criam uma mensagem (ou várias) para quem interpreta. Não sendo uma ruptura total com a organização espacial do texto, “Chuva Distante” propõe-nos uma visão diferente. A ideia do poema ser uma evolução delicada de palavras e sensibilidades é muito bem concebida nesta narrativa.
“Contos dos Subúrbios” é composto por histórias pequenas e muito envolventes. Estamos num mundo onde o real coexiste com o mágico e o materialismo adapta-se perante a imaginação.
Shaun Tan não se limita a ser um excelente ilustrador; ele consegue, também, construir narrativas muito comoventes. A dialéctica/relação de “força” entre ilustração e palavras é muito interessante. A coexistência de ambos, neste livro, resulta num Texto muito bem construído.
A conjugação das competências do autor origina um livro belíssimo, que abrange uma vasta faixa etária.
O autor, ao propor abordagens plurais a “Contos dos Subúrbios”, dota a obra de uma enorme qualidade Estética.
Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
Contos dos Subúrbios by Shaun Tan
My rating: 4 of 5 stars
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