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"A Lebre de Olhos de Âmbar", de Edmund de Waal (Diário Digital)


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=605112

O meu texto, no Diário Digital, sobre este excelente livro


Há uma vasta e intensa história em “A Lebre de Olhos de Âmbar – uma herança escondida”
Edmund de Waal, descendente da outrora poderosa dinastia Ephrussi, resgata a sua família, composta essencialmente por judeus, do esquecimento.
Durante os 3 anos de investigação para escrever esta obra, o autor acompanhou os passos dos seus principais ascendentes, passou por um processo de autoconhecimento e analisou momentos essenciais para a compreensão da História Mundial, entre o fim do século XIX e meados do século XX.
O amor pela Arte está presente desde o início até ao fim do livro.

Tudo começa num ritual. Edmund de Waal almoçava, semanalmente, com o seu tio-avô Ignace Ephrussi (1906-1994). Quando Ignace (Iggie) faleceu, de Waal recordou, de forma similar a Charles Swann em “Em busca do tempo perdido”, esses almoços que terminavam com conversas defronte da vitrina que guardava os netsuke.
Os netsuke são pequenas esculturas japonesas feitas em osso, marfim, ou madeira com acabamentos em âmbar ou resina. Serviam para os homens pendurar no Quimono, vestuário tipicamente japonês e que não tinha bolsos, bolsas para o tabaco, cachimbos, instrumentos para escrita, etc.
Esses momentos no apartamento do seu tio-avô em Tóquio seriam o início de uma grande viagem no rastro dos netsuke.
De Waal torna-se participante num ritual existente há mais de um século. 
“Poder passar de mão em mão um pequeno objecto escandaloso era um passatempo favorito na Paris dos anos 1870. As vitrinas tinham-se tornado essenciais para pequenas pausas espirituosas e galantes” pág.. 67
O tacto assume importância vital na percepção da realidade.
Amante da arte e detentor de vasta riqueza, Charles Ephrussi, depois de várias viagens em que adquiriu diversas obras de arte, instala-se em Paris. Ele virá a ser o primeiro Ephrussi a ter as estatuetas japonesas.
Charles era neto do “Abraão” da família, Charles Joachim Ephrussi que, desde a cidade russa de Odessa, projectou a expansão do império da família pela Europa através da criação de empresas na área financeira, ou através de casamentos com famílias judaicas bem escolhidas. Os seus filhos, Leon Ephrussi e Ignace von Ephrussi, foram enviados para Paris e para Viena, respectivamente.
Na época em que Charles Ephrussi se instala em Paris, após várias viagens, já o seu pai Leon Ephrussi, havia prosperado de forma assinalável. A família era apelidada de “Os Reis do Trigo”.
Nos clubes e em soirées, a arte era debatida e apreciada por várias personalidades (Vítor Hugo, Alexandre Dumas, Proust) que viriam a marcar esse século. Além de várias colecções de arte (pinturas de Renoir, Monet, Degas, por exemplo), de diversas “correntes” artísticas, Charles interessou-se pelo “admirável mundo novo” do Japonismo. Influenciado por esta “escola”, adquire os 264 netsuke, que foram expedidos de Yokohama.
A disponibilidade para apoiar vários artistas, comprando as obras e incentivando-os a produzir, transformou-o em figura essencial na vida artística de Paris.
Marcel Proust baseou, em parte, a personagem Charles Swann de “Em Busca do Tempo Perdido”, em Charles Ephrussi.
“É demasiado estranho ver como coincidem as trajectórias de Charles e de Swann de Proust. Vão-se repetindo os lugares onde Charles Ephrussi e Charles Swann se cruzam” pág. 105
No entanto e apesar de toda a sua dedicação, continuava a ser repudiado por facções anti-semitas, que viriam a crescer decisivamente com o Caso Dreyfus. A situação social da família Ephrussi e de todos os outros judeus piora drasticamente.
Esmorecido o interesse pelo Japonismo, que se tornou banal, Charles enviou os netsuke como prenda de casamento para o seu primo Viktor, que morava em Viena.
Viena era uma ilusão que cobria, até um dramático momento, o anti-semitismo e o hedonismo.
Na época em que os netsuke chegaram à cidade era possível a um deputado discursar no Reichstrat propondo recompensas pela morte de judeus.
O anti-semitismo em Viena é muito mais agressivo.
Viktor Ephrussi, o banqueiro judeu primo de Charles Ephrussi, vê os seus negócios piorarem devido à Guerra do império austro-húngaro contra Inglaterra e a Rússia. Há muitas manifestações contra os judeus.
Quando os checos conquistam Praga, eles repudiam a soberania dos Habsburgos e proclamam a independência. O império austro-húngaro é dissolvido. Áustria torna-se uma República.
Os negócios de Viktor entram na bancarrota.
Os 4 filhos de Viktor e de Emmy dispersam-se: Elisabeth, que será a proprietária seguinte dos netsuke, está na Suíça; Iggie, que receberá os netsuke de Elisabeth e os entregará a Edmund de Waal, está em Hollywood; Gisela e o marido fogem da guerra civil espanhola e vão morar para o México.
O Nazismo tem cada vez mais força. Estamos em 1938 e prestes a entrar na II Guerra Mundial (1939-1945).
Quando a Áustria se alia à Alemanha, os judeus começam a ser perseguidos. Hitler entra em Viena e o Palácio da família é confiscado. As forças alemãs, recebidas em júbilo pela sociedade austríaca, saqueiam o palácio. Levam quase todas as obras de arte. Os netsuke, que haviam perdido toda a importância ao ponto de serem vistos como brinquedos, não são levados.
Viktor é obrigado a assinar um documento que o faz perder o património que era da família há mais de 100 anos. E sai de Viena.
A criada Anna é a única que fica e será ela a guardar, debaixo do colchão onde dormia, os 264 netsuke que virá a entregar, já acabada a guerra em 1945, a Elisabeth.
Em 1947, Iggie vai jantar a casa da irmã. Estava indeciso em sair de Hollywood e voltar a trabalhar no Congo Belga, ou ir para o Japão entretanto ocupado pelos americanos. Foi então que viu as estatuetas japonesas.
“Vou para o Japão”, disse à sua irmã enquanto olhavam os dois para a vitrina. “Levo-os de volta”
O círculo fecha-se.
Já com o Japão descaracterizado pela ocupação e aculturação americana, de Waal, anos mais tarde, vai para Tóquio ao abrigo de uma bolsa de estudo dada por uma fundação japonesa.
Com o falecimento de Ignace Ephrussi, Edmund de Waal herda a responsabilidade, simbolizada em 264 netsuke comprados por Charles Ephrussi, de continuar a história da sua família.
“Um netsuke é pequeno e resistente, não racha nem quebra com facilidade: foi feito para andar aos tropeções pelo mundo. (...) Cada netsuke retirado da vitrina é um acto de resistência contra o presente, uma história recordada, um futuro esperado” pág. 255
E decide conhecer o caminho que os netsuke percorreram.

De Waal consegue aliar, com muito sucesso, a vertente mais académica (investigação) com a ficcional. A fluidez da transição de um prisma para o outro permite ao leitor saber o que vem directamente das consultas concretizadas pelo autor e o que vem da criação ficcional. A narrativa, devido a essa fluidez, não é prejudicada pelas mudanças de perspectiva.
As estatuetas japonesas foram o motivo para o autor viajar, ler e, como em qualquer ficção, ser todas as personagens que, até certo ponto, criou.
 “A Lebre de Olhos de Âmbar - uma herança escondida” é uma conjugação muito bem-sucedida entre biografia e ficção. Edmund de Waal partiu para esta aventura com o objectivo de conhecer melhor a sua família. Conseguiu muito mais do que isso.
“Já não sei se este livro é sobre a minha família, sobre a memória, sobre mim mesmo, ou se será ainda um livro sobre pequenos objectos japoneses” pág. 310
“A Lebre de Olhos de Âmbar - uma herança escondida” é uma viagem de auto-análise, de conhecimento genealógico e de reflexão sobre factos políticos que foram dramáticos para milhões de pessoas.


Máriorufino.textos@gmail.com



My rating: 4 of 5 stars
Mario Rufino
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp...

O meu texto, no Diário Digital, sobre este excelente livro




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