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"Paraíso e Inferno", de Jón Kalman Stefánsson (Diário Digital)




Não há Redenção em “Paraíso e Inferno”

“Paraíso e Inferno” (Cavalo de Ferro; traduzido por João Reis), de Jón Kalman Stefánsson (n. 1963; Reykjavík, Islândia), é um radical exercício de introspecção sobre a fragilidade da relação entre Natureza, o Homem e Deus.

Um rapaz (nunca nomeado) deixa a aldeia, devido à morte trágica do seu amigo, e principia um caminho com o objectivo de entregar um livro: “Paraíso Perdido”, de John Milton.
Subindo e descendo montanhas, dentro de um impiedoso inverno, ele leva o livro ao seu dono, um velho e cego capitão que emprestara “Paraíso Perdido” ao falecido amigo.
A relação entre narrador, escritor e personagem é uma das mais-valias deste livro. Ao contrário da dicotomia que percorre o romance, o papel de cada um dos elementos não é claro, mas antes sombrio. O escritor não nomeia o narrador; o narrador não se emancipa, propositadamente, do papel do personagem. A queda no Inferno, que pode ser a morte da ingenuidade através da leitura, é sentida pelo escritor como algo inerente à escrita, à utilização da Palavra com todas as suas limitações e rupturas.
A Islândia é terra de contrastes e dicotomias. O confronto em binómios marca “Paraíso e Inferno”: o escuro vs. claro, o branco vs. negro, a vida vs. a morte, o homem vs. o Divino, a epopeia vs. a imobilidade/clausura.
Da água vem a vida, através do alimento ou da venda do pescado, mas também a morte, por afogamento ou hipotermia.
A impiedade do mar, num país de geografia inóspita, obriga o Homem à frieza do pragmatismo e da sobrevivência:
“Um cadáver é inútil, podemos perfeitamente deitá-lo no lixo.” Pág. 70
A Literatura, ou a Arte em geral, é quase irrelevante perante o primado da serventia. Mas medir a literatura pela sua utilidade é medi-la com um instrumento indevido. A Literatura não é uma ferramenta de produção. É uma visão transdisciplinar do inconsciente colectivo e/ou individual. Não é uma rede, um remo, um utensílio.
Snorri e o misterioso narrador têm consciência disso. Foi por avaliarem os seus companheiros e a pequena aldeia onde viviam que começaram a interrogar-se, tal qual Adão e Eva. A reflexão, através da literatura, afastou os dois amigos do pragmatismo dos seus colegas. Numa terra onde o Humano parece ser um joguete entre Deus e Lúcifer, como no livro de Milton, não há espaço para a abstracção.
A questão da utilidade da literatura é fundamental em “Paraíso e Inferno”.
Perante o instrumento de sobrevivência, a Palavra mostra as suas capacidades e limitações. A abstracção irá ter consequências nefastas. Barour, ao manter a sua mente ocupada com “O Paraíso Perdido”, esquece-se de um instrumento fundamental para o frio: o impermeável. Virá a perceber que a Palavra não pode ser instrumentalizada:
“Os palavrões são pequenos pedaços de carvão e podem aquecer as coisas, mas as palavras infelizmente pouco podem fazer para manter afastado o vento ártico, infiltra-se e atinge a carne, um sobretudo razoável é muitas vezes melhor e mais importante do que todos os poemas do mundo” Pág. 56
A ingenuidade desaparece quando o narrador percebe que a Literatura não forma o indivíduo; não o torna melhor. A moralização não vem da obra literária. A lucidez (repare-se que o étimo [luc] é partilhado por Lúcifer) instala-se.
(...) porque é que um homem mau tem tantos livros, os livros deveriam tornar os homens bons, pensa o rapaz. Ele é tão ingénuo.” Pág. 95
Jón Kalman Stefánsson perspectiva a Islândia como um território primordial, onde é jogado o destino dos homens. O autor conjuga o paganismo com a perspectiva hebraica e cristã para interrogar sobre o destino de um povo tão marcado pela dor, isolamento e solidão.
Não se vislumbra na sorumbática prosa de “Paraíso e Inferno” a promessa da Redenção futura.

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=659058

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