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Entrevista a Ana Cássia Rebelo


Ana Cássia Rebelo: Vencer a morte através da escrita


Ana Cássia Rebelo conhece os seus limites. Aos 46 anos, já tentou cortar a linha da vida tecida pelas três Moiras, figuras mitológicas responsáveis pela Humanidade. O blogue «Ana de Amsterdam» (cujo nome advém de uma canção de Chico Buarque) é o espelho desse desespero. Mas não só. A autora nascida em Moçambique diagnostica a hipocrisia de uma sociedade machista e procura reconquistar para a mulher a importância exigida.


Ana Cássia Rebelo analisa-se e fala sobre a condição da mulher, do sexo, da maternidade, de literatura, do seu emprego na banca, do seu divórcio e das banalidades diárias que preenchem a sua vida. Sem autocomiseração e com a noção de que alguns dos problemas são comuns a muitas mulheres caladas pela vergonha.


Do seu blogue nasceu um livro com o mesmo nome. «Ana de Amsterdam» (Quetzal), com uma selecção de textos feita por João Pedro George e pela autora, é literatura construída com destroços. O livro resulta da quantidade de seguidores e da qualidade literária dos textos. A autora tem vindo, ao longo dos 9 anos de existência do seu diário online, a criar empatia, comoção e constrangimento. A naturalidade com que fala dos assuntos mais escondidos é desarmante. Submete o homem ao seu bisturi. Quer castrá-lo sem piedade quando se mostra ordinário, mas também o elogia quando vê necessidade. Sem banalizar os temas nem cair no trivial, a autora conversou com o Diário Digital, no Festival Literário da Gardunha, sobre o sexo, a masturbação, a maternidade, a depressão e a literatura. Sempre de forma segura e desconcertante. 
Parece que nem Zeus se atrevia a interferir na ordem tecida pelas Moiras. Atreva-se, caro leitor, a entender a (des)ordem de «Ana de Amsterdam». Vale a pena.


Estou a entrevistar uma escritora ou uma blogger?
Tenho dificuldade em responder a essa pergunta. O que faço é escrever num blogue. Por enquanto, é o sítio onde me sinto confortável a escrever. Tenho sempre a tentação de publicar no blogue todos os textos que escrevo e a pretensão de que estes tenham um cunho literário. É consciente e assumido. A linguagem dos blogues é efémera, mesmo que depois se façam colectâneas de textos. Eu quero que os meus textos permaneçam. Continuo a ter muito desconforto a identificar-me como escritora. A literatura é importante na minha vida. Tenho um amor profundo a alguns escritores. Sinto-me ainda muito de fora, sobretudo leitora.


No livro e no blogue tiveste a pretensão de reavaliar o papel da mulher na maternidade e no sexo?
Não. Eu não quero ser voz de ninguém. Escrevo sobre mim e nisso sou narcísica. Os textos do blogue são confessionais. Nunca tive a pretensão de estar ali a reflectir o papel da mulher na sociedade portuguesa. No entanto, a verdade é que os ecos que tenho tido de quem se aproxima de mim são de quem passou pelo mesmo. Acontece muito as pessoas dizerem: “ leio os teus textos e parece que são sobre mim.” Há essa identificação, mas não fiz nada conscientemente para que isso acontecesse. 


Há uma entrada no teu blogue em que dizes o seguinte sobre a dor: “De tão assumida, escancarada, exposta, perdeu impacto, tornou-se banal, simplesmente maçadora. Não devia impressionar, ou preocupar ninguém. Faz parte de mim.” 
No entanto, entre milhares de blogues, “Ana de Amsterdam” é muito seguido e chega a livro. Como é que se explica isto?
É bom espreitar pela fechadura. Ficciono alguma coisa, mas parto sempre de alguma coisa real. Apesar do desconhecimento e incerteza de se saber o que é verdade ou ficção, está ali uma janela um pouco aberta para a minha vida, que é uma vida banal de alguém que se levanta todos os dias, leva as crianças à escola, tem um trabalho das 09 às 17. Mas, depois, há o resto, uma certa profanação da minha própria intimidade.


Li o seguinte no blogue “é tudo gente morta”:
“Se fosse um aprendiz, quem seria o seu mestre?
[A tua resposta] Tinha de ser uma mulher. Recuso-me a aprender seja o que for com um homem.”
A que se deve esta recusa?
Muitas vezes fala-se da coerência como sendo uma virtude extraordinária. As pessoas que permanecem fiéis, toda a vida, a determinadas ideias são extremamente burras. É importante mudar. As nossas atitudes e reacções são condicionadas por aquilo que vivemos e aprendemos. Na altura em que dei essa resposta, eu era profundamente ressentida em relação aos homens porque vivia um casamento péssimo. Queria divorciar-me, mas o meu marido não queria. O amor dele era uma prisão. Odiava o meu marido. Agora já não odeio, passaram muitos anos e ultrapassámos uma série de coisas. Mas, nessa altura do divórcio, odiava o meu marido e todos os homens. Isso fazia-me dizer os maiores disparates. Hoje, não penso assim. Já não advogo esse feminismo bacoco, primitivo, ressentido, estúpido. Mudei de opinião. Mudo constantemente de opinião, geralmente em função das leituras que faço sobre determinado tema. Quando vejo essa resposta, acho-a disparatada, mas estou a ver-me há uns anos a responder assim.
 

Achas que hoje o homem ainda quer dominar o corpo e o pensamento da mulher?
Lembro-me da discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez, da maior precariedade na situação profissional…
Somos tratados de forma igual na legalidade do papel. No entanto, entre a protecção legal e a maneira como a mulher é socialmente encarada e tratada há ainda muito a fazer. Em relação à sexualidade, que é uma questão que me interessa porque gosto de sexo e acredito que não há realização pessoal sem realização sexual, penso que a sexualidade feminina continua a ser um grande tabu. Ouves falar da impotência masculina, com alguns constrangimentos, mas ouves falar. Vês medicamentos. E da frigidez feminina? Fala-se? Vês alguém falar? Vês anúncios? Vês alguma mulher a dizer que vai para a cama e o seu corpo não “funciona”, não sente, não deseja? E por que é assim? Porque se continua a pensar que a sexualidade feminina é algo menor, ao contrário da sexualidade masculina. A mulher não sente prazer? Paciência…Muitas vezes são as próprias mulheres as primeiras a não assumir a sua inapetência sexual.


Desde Platão até Kant, aproximadamente, que o sexo está vinculado à procriação. Achas que ainda existem resquícios desses princípios?
Tenho família goesa. O meu pai é goês e católico. A sociedade católica goesa exerce ainda uma grande importância na vida das pessoas. A doutrina da igreja é levada à letra. Não tenho nada contra as religiões. Não tenho fé, não acredito em Deus e sinto-me livre por não acreditar. Em Goa, tenho primos da minha geração que, como eu, têm formação superior, percursos idênticos, mas que têm essa estranha visão de o sexo ser para procriação. Em Portugal, no mundo ocidental, não será assim, mas o sexo continua a ser um tema muito desconfortável para muita gente. Mais facilmente se vêem cenas de violência extrema do que cenas de sexo. Na televisão, se aparecer uma cena de um homem na cama com uma mulher, tu afastas os teus filhos e dizes “não é para a tua idade”. É pornografia ou é erótico. Se aparecer uma cena em que alguém mata outra pessoa com violência, tu deixas o teu filho ficar. O sexo ainda tem a conotação de proibição, de sujo, de uma coisa que se esconde.


Dizes não acreditar em Deus, mas falas muitas vezes, no teu blogue, em ir à Igreja. “Ana de Amsterdam” é um confessionário. Tens a literatura como religião?
Talvez. Através da literatura eu transcendo-me. Vou muito à Igreja de Nossa Senhora de Fátima, que fica perto do meu trabalho. É bom ler na igreja, há silêncio, posso recolher-me e ler em sossego.


O binómio amor/sexo faz sentido? Uma implica a outra?
O amor e o sexo? Ui! Não, claro que não. Sexo é bom, com ou sem amor. Assim, como o amor é bom, com ou sem sexo.


O sexo é assunto transversal ao teu livro e ao teu blogue. Em “Pietá” e em “Seda libanesa” falas da masturbação. A eliminação do filtro entre ti e a escrita é uma luta que tens ou acontece naturalmente?
Acontece naturalmente.

Não pensas que é melhor guardar isto ou aquilo para ti?
Não, não penso. Qual é o problema de falar de masturbação? Tristes os que não se masturbam. Tenho alguns filtros. Por estranho que pareça, tenho algum pudor em expor os meus filhos. Isso é o que me preocupa mais, mas não sei bem como fazê-lo, às vezes.

Em “linfoma”, escreveste “é doloroso ler o que escreves, explicou ontem a minha mãe ao telefone”. Preocupa-te a avaliação feita pela tua família, seja a tua mãe ou os teus filhos?
Eu sou depressiva desde os 20 anos. Ao longo da vida, tive altos e baixos. Houve períodos em que me fui completamente abaixo. Durante muito tempo vivi numa solidão muito grande porque tinha vergonha de assumir isso. As pessoas diziam-me “porquê? És uma mulher bonita, inteligente, tens filhos, tens um emprego. Não tens razão para estar assim.” Isso exercia sobre mim um grande mal-estar. Interrogava-me por que me sentia assim. Sentia vergonha e culpa. Sofria em silêncio. Não é uma dor qualquer, porque é uma dor profunda, física, que te colhe completamente e te desespera. A partir do momento em que comecei a escrever sobre a depressão, pensamentos suicidas e tentativas de suicídio de alguma forma o meu processo de cura, que tem vindo a evoluir porque encontrei o psiquiatra certo e comecei a fazer psicoterapia, começou a dar resultados. Claro que isso tem consequências. Os meus filhos não lêem o meu blogue, mas entretanto já leram o livro. Os meus pais e a minha irmã lêem e muitas vezes sentem-se desesperados. Os meus pais têm de estar preparados para isso. Em relação aos meus filhos, é mais complicado. Quando o livro saiu, tive de falar e assumir uma série de coisas e fi-lo de uma forma muito directa. Eles sabem agora que a mãe é depressiva, vai a um psiquiatra, já se tentou suicidar. Sabem também o meu amor por eles é incondicional e que é esse amor que muitas vezes me salva. Curiosamente, os meus filhos não têm a ideia da mãe como uma pessoa frágil. Precisamente ao contrário. Têm a ideia de que a mãe tem superado e seguido em frente.

Foi uma forma de pedires ajuda e de criares alguma coisa dessa destruição toda…
Há uma máxima do hinduísmo que diz ser preciso destruir tudo para se poder construir de novo.

“Como se mata uma amiga, a melhor, que vive dentro de nós?”, escreveste. Conseguiste matar a melhor amiga que vive dentro de ti?
Não, não. A minha depressão é crónica. Eu nunca me vou livrar dessa minha “melhor amiga”. No entanto, há maneiras de me relacionar com ela e de não deixar que ela tenha um ascendente sobre mim. Eu já conheço os sinais todos. Sei quando ela vem, percebo logo. E também sei, mesmo durante aqueles períodos de crise profunda, que ela tem um carácter transitório. Esse sentimento de angústia profunda chega e depois vai-se embora.


Em “libélulas”, afirmas: “(…) sou interessante, é verdade, apesar de isso resultar, em parte, da psicose de que padeço”
Pensas que a tua criatividade está ligada a esse estado emocional?
Tenho pensado muito sobre isso. Vou manter o blogue, é uma forma de diário. Li diários de vários escritores como Virgínia Woolf e tantos outros. É uma boa prática. Obriga-me a escrever, disciplina-me. Tenho aquele compromisso. No entanto, gostava de me libertar um de mim própria. Nesse sentido o meu estado de espírito deixa de ser decisivo naquilo que escrevo, sendo certo que podemos sempre escrever sobre os outros escrevendo sobre nós.

Em “Toutinegras” falas de um livro teu. Dizes assim: “escrevi um livro que é uma grande merda. Disse-o eufemisticamente o editor.”
 Isto é altamente sarcástico em relação a ti própria…
Temos que ser um pouco sarcásticos em relação a nós próprios. Não há paciência para aqueles escritores cheios de si próprios. São insuportáveis. Não consigo estar ao pé dessas pessoas. Também não gosto do sentimento de autocomiseração. É importante rirmos de nós próprios.

Sentes-te mais preparada agora?
Não, não me sinto.

Há entradas no teu blogue que são contos. Li, também, as narrativas curtas “Translucidez” (2012), “Os pés de Rudolf Nureyev” (2010) e “Enanito” (2012), em diferentes blogues.
Pensas que é um caminho para a tua escrita?
É o caminho que eu gostaria de seguir. Escrever um romance exige um esforço que eu talvez não tenha. Gosto de romances, mas também gosto muito de ler contos. Ando sempre com um livro de Tchekov que encontrei numa edição muito antiga, em papel parecido com papel-bíblia. É óptimo, porque a qualquer momento posso pegar no livrinho e lê-lo.


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=781447

 

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2 Comentários

macy disse…
Obrigada Mário e Ana por esta pérola...adorei.
Abraço
Teresa Carvalho
Mário Rufino disse…
Muito obrigado, macy, pela leitura e pelo comentário.
MR