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"Eu Confesso" (Tinta-da-China) de Jaume Cabré



«Eu Confesso»: O problema do Mal


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=782419

«Eu Confesso» (Tinta-da-China) é um colossal trabalho literário de Jaume Cabré (n. Barcelona; 1947). Em 735 páginas, o escritor catalão construiu uma obra poliédrica, multidisciplinar e abrangente sobre o poder do Mal. «As vozes do rio Pamano» e «Sua Senhoria», ambos editados também pela Tinta-da-China, têm um digníssimo sucessor.

O homem precisa de transformar as recordações numa narrativa para poder observar e observar-se. É essa narrativa que espelha o tema de análise. Daí a psicoterapia e, principalmente, a literatura. Neste caso, a literatura é a terapia. É através da ficção que o homem consegue descodificar os factos. A parábola e a metáfora são luzes sobre a verdade. Em “Eu Confesso”, a luz - como conhecimento - incide sobre a maldade. Jaume Cabré utiliza figuras reais e acontecimentos históricos para, através da ficção, pensar sobre a construção da identidade europeia, incluindo a cultura judaico-cristã.
Aos 60 anos, Adrià pressente o seu fim e decide escrever a Sara Voltes-Epstein. Precisa de reparar o que fez para aliviar a sua culpa. No entanto, ele sabe da dificuldade de tal tarefa:
“Reparar o quê, quando o mal é irreparável?”
A longa carta de Adrià é um exercício de memória sobre a sua vida e as vidas que tanto o influenciaram. Enquanto a sua memória resiste à doença é possível seguir as pistas que ao longo de séculos foram traçando o caminho do Mal. Segundo as palavras de Adrià, “no fundo, tudo começou há mais de quinhentos anos, quando aquele homem atormentado decidiu solicitar a entrada para o mosteiro de Sant Pere del Burgal”.

As histórias deste romance têm um objecto em comum: o violino Storioni, feito no século XVIII. Desde a árvore que forneceu a madeira até chegar às mãos da família Ardèvol, o violino transporta o passado do artífice, do assassino Jachiam Muredas de Pardàc, de Monsieur Vial, de judeus que o levaram para Auschwitz, dos médicos que lá fizeram experiências em crianças até, finalmente, ser tocado pelo solitário Adrià, filho de Fèlix Ardèvol e de Carme Bosch.
A obsessão do pai pelo coleccionismo – ele fazia tudo para acumular artigos históricos- e a ocupação da mãe com tudo excepto com o filho, levaram o pequeno Adrià a projectar a sua consciência em dois “amigos”: os bonecos Águia Negra (chefe índio) e Xerife Carson.
O seu tempo era ocupado em jogos de espiões com os seus dois companheiros, a tocar violino e a aprender línguas estrangeiras. Adrià tinha uma memória prodigiosa. Será enquanto a doença não a destrói que ele se tenta reconciliar com o passado. Estava velho, doente e cada vez mais dependente. Ao escrever essa longa carta para a sua amada Sarah Voltes-Epstein, ele percebe que a criança de outrora já era parte integrante de uma corrente de acontecimentos com resultados dramáticos. Séculos antes de Adrià ter nascido, o mal já havia começado o seu caminho, ao marcar presença em actos com maior ou menor banalidade:
“Tudo, na vida e nas narrações, começa assim, querida Sara, com um inofensivo grão de areia que passa despercebido.”
O violino Storioni herdado do senhor Félix Ardèvol (pai) traz horrores em si marcados. É testemunha do genocídio de Auschwitz e motivo de invejas e assassínios. E é através desse instrumento e de uma pintura detida pela família que o filho Adrià Ardèvol vai juntando os fragmentos existentes na sua memória, cada vez menos fiável.
Ele recorda-se da pressão exercida pelos pais. Mãe e pai tinham caminhos pré-traçados para o seu filho. É só a partir do momento em que Ardèvol vai estudar para Túbingen que se liberta desses planos alheios à sua vontade. Esta é a circunstância em que a sua infância e inocência terminam. Com o amadurecimento, os bonecos Águia Negra e Xerife Carson, que eram “consciências” interlocutoras da criança Adrià, têm a sua importância reduzida. O jogo de identidade e consciência vai sendo cada vez mais complexo. Algumas personagens fogem ao seu passado. A impossibilidade de viverem com os seus actos e de recearem as consequências origina nomes falsos. As atrocidades acontecidas em campos de concentração obrigam os seus perpetradores a mudar de nome. Mas o nome verdadeiro não define uma identidade, não desvenda toda a verdade, nem pacifica as vítimas e seus familiares. É preciso muito mais.
Para Ardèvol, a verdade da experiência vivida, pensando em Auschwitz, “só pode ser transmitida através da arte; do artifício literário, que é a maior aproximação à experiência vivida” Por isso, a poesia depois de Auschwitz (e a música e a pintura) tem de existir, ao contrário da opinião de Adorno. As sombras de autores que se debateram sobre a maldade e o nazismo aparecem na prosa de Cabré. Zweig, Levi e o já mencionado Adorno são influências confessadas pelo autor catalão neste seu monumental romance.
Ardèvol, em companhia do seu amigo de infância Bernat, tenta compreender o mal, desde o horror do holocausto até à banalidade de um acto individual. Na sua perspectiva,”o instrumento do mal tem nomes e apelidos, mas o mal não, a essência do mal… são questões que ainda não consegui desvendar.”
Não consegue desvendar o mal nem lidar com a culpa. As suas acções e inacções serão a sua cruz. E só quando a sua memória deixa de as apresentar, constantemente, é que Ardèvol pousa a culpa que havia carregado.
O contraponto de Adrià e de diversas personagens é a criada Lola Xica. Talvez seja ela a chave da redenção. Ela vive e serve a família Ardèvol até ao fim. É dela que Adrià sentirá falta. É o seu nome que mais resistirá aos avanços da demência. E será ela a fazer o que ninguém na família fez: abdicar.
Jaume Cabré, um dos mais importantes escritores europeus, exige concentração máxima na leitura. Este romance, multipremiado em 2012 e 2013, é um desafio para o leitor e um “curso” de técnicas narrativas para escritores
O tempo narrativo não está sujeito à ditadura cronológica. O escritor catalão sobrepõe épocas, imagens, discursos e vozes narrativas numa longa carta que não se deixa prender às limitações do género epistolar. Sempre com um objectivo preciso e coerente:
Traçar a genealogia do Mal.
As histórias, aparentemente desconexas, unem-se em momentos críticos numa teia narrativa que captura a solidão e o medo. Os pequenos acontecimentos cruzam-se e transformam a vida das personagens. O que era quase insignificante catalisa importantes transformações.
Sobre a literatura, Isaiah Berlin, como personagem de Jaume Cabré, afirma que “todos os dias leio e todos os dias me apercebo de que ainda tenho tudo por ler. E de vez em quando tenho de reler, apesar de só reler o que merece o privilégio de ser lido” e termina assim “um livro que não merece ser relido também não mereceria ter sido lido.”
“Eu Confesso” é uma obra extraordinária e exige um “interlocutor” preparado para usufruir de literatura pura. É para ser lida e relida.

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1 Comentários

macy disse…
Este é um daqules não é Mário? Daqueles que não épossível resistir....
Adorei a tua opnião, mas isso já é um dado adquirido. Tu és um estraga contas bancárias!! (Aqui que ninguém nos "ouve", ainda bem que és!)
Beijinho
Teresa Carvalho