Correntes d`Escritas: os dias que rasgam pulsos
“Ana de Amsterdam”, blogue de Ana Cássia Rebelo, foi editado em livro pela Quetzal. Com textos escolhidos pela autora e por João Pedro George, que escreveu o prefácio, “Ana de Amsterdam” é visceral, composto por frases e palavras que ferem, numa demografia descritiva da realidade. Da banalidade à ruptura, a autora tanto fala sobre as mamas de uma rapariga “com o cheiro de bairro social entranhado na pele” como do seu sonho em cortar os pulsos.
“Como se mata uma amiga, a melhor, que vive dentro de nós?”
As rotinas incipientes, a estranheza e os ódios alimentam os seus solilóquios. A sua vagina, “feia, primitiva, um resquício de antiguidade, de rudeza”, é observada com a mesma atenção. A banalidade dos gestos, pessoas e locais de sentido subtraído, o seu corpo, os seus filhos, a frigidez sexual, a tentativa de suicídio e os fracassos são expostos com impressionante crueza .
“É triste uma pessoa falhar até na morte, não acha?”
O seu desprezo pelos homens, a quem deseja uma castração o mais dolorosa possível, é justificada com primitivos piropos de machões que vociferam “Com esse cabelo preto deves ter um bom grelo. Lambia-to todo”.
Ana Cássio Rebelo expõe-se e, em consequência, constrange o leitor, que está consciente do seu voyeurismo. Dia após dia, o leitor entra na vida alheia, na intimidade, nos segredos que, muitas vezes, nem a ele próprio assume. E é neste jogo de sedução, de observação, sem internet nem vídeo-câmara, que a autora se dá a observar, crua, nua, sem filtros.
Nas Correntes d`Escritas (Póvoa de Varzim) Ana Cássia Rebelo deu a cara depois de mostrar as entranhas. Os leitores conheceram primeiro o interior, os medos, anseios, a depressão. Tanto a principal sala do teatro, onde a escritora participou na Mesa 5 (“Da Escrita em ruínas transpiram as intermitências da vida”), como a Sala de Actos, onde foi apresentado o seu livro, estava cheia desses voyeurs, que acompanharam os dias ora negros ora cinzentos da autora.
Ana Cássia Rebelo não titubeou e apresentou-se com um discurso destemido (Mesa 5), onde se afirmou com uma leitora avisada e capaz de formar a sua opinião, mesmo que em confronto com juízos canónicos. Sobre o palco e sem o filtro do isolamento, a autora encarou o público e, sem hesitações, confirmou a vontade em rasgar tabus, tão presente em “Ana de Amsterdam”.
Na apresentação do seu livro, ainda antes da participação na Mesa, Ana Cássia Rebelo confirmou a sua intenção em escrever sobre a sua vida, as suas alegrias, filhos e trabalho. Sobre a actualidade, afirmou, já havia quem escrevesse melhor do que ela.
Segundo a autora, “Ana interpreta a condição de muitas mulheres que coabitam com a frustração”. Essa frustração, de acordo com a sua interpretação, deve-se ao machismo, que não possibilita o desenvolvimento das múltiplas facetas da personalidade da mulher.
“Ana de Amsterdam”, título com origem numa música de Chico Buarque, é o diário de bordo dessas múltiplas e por vezes violentas frustrações.
“Ana de Amsterdam”, título com origem numa música de Chico Buarque, é o diário de bordo dessas múltiplas e por vezes violentas frustrações.
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