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“Aproximadamente do Tamanho do Universo”, de Jón Kalman Stefánsson

 







Um universo demasiado pequeno


Depois de uma excelente trilogia, um díptico menos conseguido. Jón Kalman Stefánsson envolve as personagens numa densa neblina, exigindo total concentração ao leitor. Valerá a pena o esforço?


O jornal norueguês Dagbladet compara Stefánsson a Melville enquanto o The Independent o faz em relação a Cormac McCarthy. Se resulta em termos comerciais, também desnuda as diferenças entre “Aproximadamente do Tamanho do Universo” e obras como “Moby Dick” ou “A Estrada”. Enquanto o livro de McCarthy e principalmente o de Melville conseguem desenvolver as vertentes sociológicas e psicológicas- Moby Dick é também documental- o de Stefánsson fica aquém.  O autor nascido em Reiquiavique não consegue delinear, com igual interesse, a inóspita Islândia, a sociedade em transformação e a psicologia das personagens que nela se movem. Mesmo que evitemos a comparação proposta pelo TLS, The Independent e Dagbladet é inevitável compararmos com obras anteriores do mesmo autor. Esta obra díptica terminada com este livro não chega ao patamar da anterior trilogia. 

“Aproximadamente do Tamanho do Universo” continua a partir do fim de “Os Peixes Não Têm Pés”.

A história de três gerações estabelecidas neste inclemente lugar do planeta começa, em “Os Peixes Não Têm Pés”, com uma informação em jeito de aviso para quem entra nas 660 páginas deste díptico sobre Ari e a sua família:

“Em Keflavík há três pontos cardeais:

o vento, o mar e a eternidade.”

Em “Os Peixes Não Têm Pés”, Ari regressa a Keflavik, sua terra natal. Após a leitura de uma carta, ele suspeita que o seu pai tem pouco tempo de vida. Nesta pequena localidade islandesa, “cercada por campos de lava”, Ari recorda os anos 70 e 80. Nessas décadas, ouvia Pink Floyd e Beatles, assaltava camiões de abastecimento que saíam da base militar norte-americana e cortejava as raparigas.

De forma intercalada, decorre a história do pai e a história dos seus avós, Oddur e Margret. Os dois anciãos percorreram o inóspito caminho de uma terra com pouco para oferecer. O mar era fonte de alimento, mas também de dor, solidão e medo.

Já em “Aproximadamente do Tamanho do Universo”, o autor dá mais informação sobre Oddur, Margret e Ari. De forma similar ao primeiro livro, trata-se de um regresso. Ari sai de Copenhaga e volta a Keflavik para se encontrar com o pai, em final de vida, apesar de nunca terem tido uma relação próxima.

“Na verdade, não conversaram de todo durante quarenta e cinco anos, as palavras só serviam para pedir leite, o comando, a colher de pedreiro. Jakob nunca disse: Meu filho. O Ari nunca disse: Meu pai.”

Neste livro, Stefánsson estende a sua visão até aos anos 60, dando a conhecer a mãe de Ari. 



São três gerações com histórias a espelhar a evolução do século XX do território. A Islândia continua ligada ao mar, tanto geográfica como emocionalmente, mas a organização social foi mudando desde Oddur e Margret até Ari.

“Os habitantes de Keflavik aborrecem-se amiúde hoje em dia, a quota pesqueira pertence ao passado, o exército americano partiu, Rúnni Júll morreu, pouco sobrou além do desemprego e dos três pontos cardeais – vento, lava, eternidade -, e vender um carro e comprar outro que o substitua é, por conseguinte, uma ideia brilhante, porque pelo menos assim acontece alguma coisa, tanto nas nossas vidas quanto na carreira profissional do vendedor de automóveis, e Keflavík torna-se imediatamente um lugar melhor.” 

A austeridade sob um céu cinzento, que tanto pode oprimir como convidar a poesia e o sonho, é património das diferentes gerações. Tal qual a literatura, mas este bem comum parece estar a rarefazer-se. Ainda feitos de histórias, cada vez menos islandeses as ouvem. Stefánsson insiste em manter vivo o cânone literário enquanto sublinha os rasgos da modernidade (“Landnámabók”- O Livro da Colonização ecoa na sua prosa). A Islândia não é a Islândia dos postais nem das palavras fervorosas de adeptos iludidos. Stéfansson sabe disso e denuncia-o. Assim o fez quando esteve presente no Fólio- Festival Literário Internacional de Óbidos, em 2016, e em consequentes entrevistas em Portugal. Assim o faz em “Aproximadamente do Tamanho do Universo” através da narrativa de um Ishmael sem carisma. Podemos chamar-lhe conforme nossa vontade, pois não nos é dado um nome. Esta voz poderia transformar um todo fragmentado numa narrativa homogénea, mas não o faz. A sua presença aproxima-se de uma voz autoral sem grande impacto no rumo das personagens numa Islândia que – honra seja feita a Stefánsson- foge aos estereótipos.  No entanto, o autor entrega um texto literário com rarefeita luz a incidir sobre as personagens. A profusão de figuras secundárias e planas prejudica o vínculo entre leitor e avatares, provavelmente até entre leitor e a própria obra.

Esta voz dispersa-se com tiradas filosóficas e abstractas, considerações sexuais marcadamente masculinas e repetições dos mesmos assuntos em “loop” com os pormenores mais mundanos. 

Devido a isso e à aparente autocomplacência do narrador, o caminho torna-se fastidioso.

Acompanhamos com interesse o onirismo tão próximo de Laxness ou de Gunnar Gunnarsson, as mudanças tecnológicas num país castigado tanto pelo vento e frio como pelo esquecimento, mas as personagens de “Aproximadamente do Tamanho do Universo” estão muito longe de arrebatar como  Jens, de “O Coração do Homem”, conclusão da trilogia iniciada com “Paraíso e Inferno” e continuada com “A Tristeza dos Anjos”.

Em entrevista ao extinto Diário Digital, em 2016, o autor afirmou que “A história em si é importante, mas está longe de ser a única coisa que importa. O estilo é tão ou mais importante do que a história. O estilo é a forma como contas a história. (…) Escrever um romance é, em parte, técnica de poesia. A poesia é ilógica. O tempo não é em “linha recta”. A nossa mente e o nosso sangue estão cheios de passado, de coisas que nos aconteceram e de palavras que alguém nos disse. Todo o tempo nós estamos parte passado e parte no presente. Nesse sentido, o tempo não existe. O passado e o presente são invenções nossas.”

São ideias fundacionais de “Aproximadamente do Tamanho do Universo”.

Stefánsson tem extremo cuidado com a linguagem. O tom poético transforma o texto em imagens soniais. É o grande mérito da obra, mas é inevitável que esse mérito seja diluído entre línguas tão diferentes. Por muito valioso que seja o trabalho do tradutor, é inevitável a perda da cadência da língua de partida, neste caso do islandês.  

A tradução é de João Reis. O tradutor de “Os Peixes Não Têm Pés”, assim como de “Paraíso e Inferno”, “A Tristeza dos Anjos” e “O Coração do Homem”, é a voz mais adequada para nos recriar a melodia de Stefánsson. A escolha do mesmo tradutor dá coerência aos livros editados em português. Torna-se interessante perceber o esforço do tradutor em transferir o mais possível de uma realidade tão soturna para a soalheira língua portuguesa. O precioso labor de João Reis deve ser mencionado, pois, por vezes, é mais interessante assistir ao seu trabalho sobre a linguagem poética do que tentar encontrar o caminho de volta para o cerne de “Aproximadamente do Tamanho do Universo”.

“A vida não é linear. A vida não é ir numa direcção; é ir sempre em todas as direcções. Eu quero pôr isso nos meus textos”, afirmou o autor na mesma entrevista. Cumpriu com essa premissa.


Não nos deixemos enganar por uma obra menos conseguida. Jón Kálman Stefánsson é um dos nomes mais relevantes da literatura escandinava contemporânea. E já o comprovou em “O Coração do Homem”, “Paraíso e Inferno” e “A Tristeza dos Anjos”. Merece ser acompanhado pelos leitores.

Embora possam ser lidos isoladamente, há muito a ganhar quando “Aproximadamente do Tamanho do Universo” é lido depois de “Os Peixes Não Têm Pés”. Mas depois de termos conhecido a excelência da sua escrita na trilogia anterior, chegamos ao fim da obra díptica com uma pergunta:

Será que valeu a pena?


*** 3 Estrelas

Publicado em https://observador.pt/2020/06/30/um-universo-demasiado-pequeno/



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