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"estes ventos negros", de João Narciso

 



Poética da solidão.

 

Por vezes, surge na literatura portuguesa uma espécie de cometa a rasgar a monotonia.  
"estes ventos negros" (Edições Caixa Alta), de João Narciso (n.1982, Pedras Lavradas), ilumina durante cerca de 70 páginas a vida do leitor. E fica em chama na memória, como aqueles cometas mais brilhantes, ainda que já se esteja a ler o livro seguinte. 



 

João Narciso quebra a sintaxe e entrega-se a um jogo semântico e rítmico na construção de uma poética da solidão e do abandono. 
A gestão da frase e do seu silêncio confronta-nos com um afastamento afectivo e físico cada vez mais largo e mais fundo. 
A pandemia veio escavar a distância entre palavras e gestos. 
A construção sintática transmite essa ideia de ruptura da normalidade. É através do rasgo que são mostrados os rituais perdidos, a vida desarrumada, os novos gestos de protecção, mas também de afastamento. É no silêncio, no não-dito, que mora a melancolia e, tantas vezes, a tristeza das personagens.  
Narciso não se amarra a uma história linear que, de tão repetida, seria fastidiosa. Uma simples história sobre esta solidão escavada pela pandemia, com todos os neologismos e palavras resgatadas ao pó, mostraria pouco mais do que a vida exposta diariamente na imprensa, rádio e televisão. A história desta família desagregada pelo acrílico que os separa deste homem velho, seja na sua qualidade de pai, sogro ou avô, pelas máscaras que os impede de beijar e de dar palavras limpas, seria mais uma se não fosse a estética. O autor sublinha o efeito emocional em detrimento do esmiuçar das causas.  Sempre com frases em cadência poética, desafiadoras, a radiografar os efeitos do novo normal
 numa lógica de abandono. 

A linguagem encontra o seu equivalente neste homem velho, dentro de um lar. Ele é a ruptura. Tal qual João Narciso, este homem velho prefere o risco. A segurança imposta pelos outros, ainda que seja por motivos meritórios, prende-o à solidão. A necessidade de toque, de afecto, de voltar a colar a vida das pessoas impele-o às rotinas antes da pandemia. Ele quer tirar o acrílico e abraçar, quer tirar a máscara e falar sem mordaça. Na sua vida, cada vez mais abreviada pela idade, ele prefere estar envolvido nos braços do filho. Não quer viver protegido e isolado.
 
“chegas-te a ele e abraça-lo com a força da tua saudade, //quão violenta é a força da saudade?,/e se ele nunca mais te toca?, //abraça-lo e fechas os olhos,/assumes a escuridão/abres portas à noite,//abraças o teu filho e anuncias que não o largarás/até que ele te beije e abrace,// fazes o teu anúncio de olhos fechados perante a assistência/que te observa de caninos afiados, forças o abraço e pedes/ o beijo, és um terrorista doente, em estado terminal,/ que faz reféns e depois exige que o resgate seja pago em/liberdade, em vez de pedir tempo,// quero liberdade, não me dêem tempo” 


João Narciso desencostou-se do previsível e conseguiu, com muita segurança e qualidade, construir um exercício de linguagem com sentido e emoção num livro de extensão exacta. A leitura do autor Ivo Canelas espelha esse equilíbrio entre ritmo e tempo. 
A leitura demora um fôlego. O efeito dura muito mais. 




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