“ A Bofetada”
Christos Tsiolkas
D. Quixote
“É o mundo moderno,
Anouk. Somos todos putas.” Pág. 87
“ A bofetada” de Christos Tsiolkas é
um rasgo na realidade do leitor. Há livros assim: Pegam em nós e conseguem
sacudir a nossa realidade até à quase insuportável inquietação.
A
tensão existe e é mantida desde a primeira até à última página.
O
enredo apoia-se em várias perspectivas, numa polifonia, sem perder coerência. A
narração adopta, frequentemente, o discurso indirecto livre. A perspectiva
associa-se de tal forma ao pensamento de cada personagem que, por vezes, não
temos a certeza a quem pertence a voz que “ouvimos”. A linguagem apodera-se da
realidade, expressa-se de forma obscena e, por vezes, caricatural. No entanto,
poucas vezes é utilizada de forma gratuita. O comportamento das personagens
consegue melindrar mais do que o léxico utilizado.
De
uma maneira ou de outra, o leitmotiv
(a bofetada dada a uma criança) é debatido em todos os capítulos. E é desta
forma que o texto não perde a coerência e a leitura mantém-se fluente.
Através
dos elos sociais e afectivos, cada um extrai o que precisa sem haver a preocupação
em retribuir. Vive-se na Era da “New Age” onde a falência moral é uma realidade
e a sociedade segue a ideologia de “Why Not?”.
O
churrasco em casa de Hector, personagem que acompanhamos no primeiro capítulo,
é o epicentro da falência dos equilíbrios precários que existem entre os
convidados. É o único local onde temos as personagens do livro reunidas. A
tensão entre os elementos já se faz sentir e continuará em crescendo até ao fim.
Percebemos o mundo em que entramos e sentiremos, até ao fim do livro, a
inquietação que se instala em nós. A festa é um microcosmos onde a principal
filosofia é o hedonismo: A tensão sexual é permanente, a linguagem é obscena,
partilham-se drogas sintécticas e leves, bebe-se muito álcool. Na página 40,
Tsiolkas, autor e também argumentista como Anouk, parece justificar a opção
pela abordagem mais crua e menos poética do texto:
“É televisão, Gary,
televisão com fins comerciais- Anouk falou num tom simultaneamente cortante e
entediado- Não, as famílias verdadeiras não são nada assim.
- Mas estás a
transmitir um corrilho de tretas que depois vai influenciar milhões de pessoas
no mundo inteiro! Toda a gente pensa que as famílias australianas são
exactamente como as da telenovela!”
Não
são e Tsiolkas demonstra-o neste livro.
A
inquietação vai crescendo, as crianças lutam entre si e fazem muito barulho, as
divergências políticas, religiosas e culturais animam as discussões, os
comportamentos libertam-se com a droga e o álcool até tudo rebentar numa
estalada na cara de uma criança. É este impulso, um breve momento de violência,
que desencadeia a ruptura entre as ligações familiares e de afecto que ligam os
convidados. A partir daqui tudo será diferente.
Família
e amigos condenam ou apoiam a acção de Harry, que havia batido em Hugo. Os pais
da criança apresentam queixa na polícia e levam o caso a tribunal. Extremam-se
posições e as decrépitas ligações entre eles quebram-se.
A
partir desta ruptura, o autor leva-nos a conhecer uma sociedade multicultural,
onde coabitam várias religiões, nacionalidades e ideologias. Há sentimentos em
comum e que são muito bem transmitidos ao leitor: o sentimento de perda, de
degradação familiar e social, de insegurança enraizada em infâncias e
adolescências problemáticas (alcoolismo, HIV, maus tratos, drogas, jogo,
suicídio, abandono…) e que influencia a educação das gerações posteriores.
“ Estes miúdos são
inacreditáveis. Acham que o mundo lhes deve tudo e mais alguma coisa. Forma
mimados até dizer chega pelos pais e pelos professores e pela porra dos media e
acham que têm todos os direitos do mundo e nenhuma obrigação, por isso não têm
vergonha na cara, não têm valores nenhuns. São egoístas, umas merdinhas
ignorantes”,
afirma Anouk criticando indirectamente Rosie, a mãe do rapaz que levou a
bofetada.
Há
uma latente falência da moralidade, as personagens andam perdidas numa escala
de valores que não assimilam. Não sabemos que espécie de moral rege os
comportamentos dos personagens, mas sentimos o desconforto por termos
consciência que essa imoralidade não existe assim tão longe do nosso
quotidiano.
“(…)somos todos putas.
Os laboratórios farmacêuticos oferecem-me viagens à borla, para mim e para a
minha família, em troca de eu dar vacinas a animais que sei que não precisam
delas. É o mundo moderno, Anouk. Somos todos putas.” Pág. 87
O
comportamento individual roça a obscenidade e, no entanto, é credível. Estamos
perante a incoerência de indivíduos inseridos numa sociedade materialista,
longe da Igreja e vencida pela velocidade da informação.
No
capítulo onde acompanhamos Harry, adulto que deu a estalada à criança, a
aglutinação de tais incoerências está patente em vários episódios. O mais
ostensivo é quando Harry vai ter com a amante e imagina estar a fornicar a
esposa. Quando termina e depois de consumir algumas linhas de cocaína,
dirige-se a casa, dando graças a Deus por ter uma excelente esposa, um filho
lindo, uma piscina, cozinha nova, garagem, dois carros, aparelhagem e um plasma.
E o exemplo de Harry poderia ser o exemplo de outras personagens que, em muitos
casos, comungam casos de infidelidade, intolerância e inadaptação.
“A Bofetada” é um livro extenuante
não só pelo volume (537 páginas), mas – essencialmente- pelo desgaste emocional
a que o leitor é sujeito. Apetece dizer quando se abre a primeira página “
Deixai toda a Esperança, Vós que entrais”. No entanto, Christos Tsiolkas
consegue prender o leitor ao texto até à última página. Não é inteiramente
verdade que toda a esperança seja eliminada do livro. Há momentos de catarse,
tolerância e aceitação. Quando Richie confessa a sua obsessão por Hector, a mãe
reage mal e esbofeteia-o. No entanto, ela reconsidera e afirma “Hás-de apaixonar-te por outros homens e
muitos homens por ti” Pag.521
Quando
a mãe pergunta a Richie se ele vai tomar drogas num festival de música, ele
responde afirmativamente. Iria tomar ecstasy e erva. A reacção da mãe é tudo
menos conservadora:
“- Oh, meu amor. – Ela
esticou o braço para ele, mas recolheu-o abruptamente. – Pelos vistos, já és
adulto” Pág. 528
“ A Bofetada” é desconcertante e
merecedor do tempo aplicado na sua leitura. O autor conseguiu criar um mundo
estranho, frio e calculista. É um livro perturbador e com uma ostensiva negação
do banal.
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