O meu conto de Janeiro na Revista "Letras et Cetera"
Cólicas
As
cólicas provocavam-lhe uma agonia sem vómito.
Tentou
distrair-se enquanto escrevia mais um texto, mas as guinadas eram cada vez mais
agudas. Não havia palavra que não fosse terminada com uma dor violenta que
obrigava o corpo a debruçar-se sobre o teclado. Pousou as duas mãos na barriga.
Só assim conseguia estar imóvel.
Tinha
arrepios de frio, as pernas não conseguiam estar quietas, a boca rasgava-se em
dor e uma indefinível inquietação preenchia o seu ânimo.
Os
dedos voltaram a insistir nas vogais e consoantes do teclado. Guinada. Dor.
Abriu a boca para o corpo expulsar o mal que havia nele, mas nada saiu. Correu
para a casa de banho, não sabia por onde sairia toda aquela agonia, e ficou sem
saber, pois voltou para o escritório com as mesmas dores, com a mesma
obstipação.

«Preciso
de ar fresco»
Telefonou
para desmarcar um encontro.
«Tens
de fazer dieta e comer melhor»,
disseram-lhe. Sorriu e minimizou a importância do seu próprio tamanho. «Sou
pessoa de três dígitos», respondeu.
«Tens
falta de fibra»
«Não
digas isso…»
«Bebe
chá. Tens falta de chá.»
«De
que tipo?»
«Sei
lá… vai experimentando.»
O
caminho para casa foi demasiado longo. Cada sinal de trânsito provocava um
momento de desespero.
«Não
vou chegar a tempo, não vou chegar a tempo...». Mas conseguiu chegar a casa sem
sofrer qualquer acidente.
Entrou,
despiu o casaco e passou a mão pelas gotas que escorregavam na pele do rosto.
Pousou
as chaves, foi para o escritório, sentou-se à secretária e ligou o
computador. Pousou as duas mãos na barriga .
Olhou
para as fotos sobre a secretária, espreitou os jornais on-line e
decidiu enfrentar o cursor que aparecia e desaparecia na página vazia.
Começou a escrever palavras ao acaso, sem
sentido, à espera de que o texto aparecesse. As frases começaram a surgir e a
dor aumentou. Batia furiosamente com os dedos nas teclas, com grande
velocidade, empenho, percebendo que havia algo ali de que gostava muito. Os
arrepios de frio percorriam o seu corpo, mas não parava de escrever, as dores
de barriga aumentavam, mas não desistia. Olhava para o teclado e mal corrigia o
que aparecia na folha em branco até lhe chegar um odor desagradável,
pestilento, das suas mãos. Cheirou-as, olhou para a cadeira e sem mais demora
correu para a casa de banho. Puxou a roupa para baixo e sentou-se com
alívio.
Deixara a porta aberta. A casa cheirava a algo morto. O cursor piscava, implacável.
Deixara a porta aberta. A casa cheirava a algo morto. O cursor piscava, implacável.
Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
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