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Valério Romão (Portugal): CELA| Connecting Emerging Literary Artists













CELAConnecting Emerging Literary Artists




O Livrómano junta-se como parceiro online ao projecto Cela| Connecting Emerging Literary Artists na divulgação de autores e tradutores emergentes na literatura europeia. 

18 autores oriundos de seis países serão apresentados em www.livromano.pt, semanalmente, desde Fevereiro até Junho. Esta divulgação consistirá em apresentação do projecto, biografia do autor, um testemunho do próprio autor e um conto. Desta forma, o leitor português enriquece os seus conhecimentos sobre os escritores e tradutores que, num futuro próximo, serão seguidos com atenção.

O Projecto:

O projeto CELA (Connecting Emerging Literary Artists) abre o palco europeu a uma nova geração de criadores literários. Permite uma cooperação transnacional intensiva entre talentosos escritores, tradutores e profissionais literários europeus em início de carreira. No decurso do projeto, os participantes enfrentam algumas das mais exigentes realidades da nossa era — de fraturas cada vez mais acentuadas na Europa a um setor editorial em mudança — e põem-nas em perspetiva, partilham o seu trabalho e colmatam o fosso que os separa do setor editorial e do público europeu.
As organizações literárias de seis países europeus uniram forças para fundar o projeto de incubação de talentos cela — Connecting Emerging Literary Artists. Partilhamos a necessidade de estabelecer uma infraestrutura sustentável de incubação de talentos para preservar a diversidade da literatura europeia e dar maiores oportunidades a línguas minoritárias. 
O projeto proporciona um percurso de dois anos com formação, instrumentos e uma rede que visam tornar possível uma carreira internacional e estabelecer uma prática profissional integrada. Com uma atenção em competências e mobilidade transnacional, incluímos especialmente as oportunidades digitais na literatura, novas formas de os participantes conseguirem emprego e rendimento.
Cada edição do projeto cela decorre durante dois anos. No primeiro ano, as organizações literárias orientam os escritores, tradutores e profissionais literários e proporcionam-lhes um programa multinacional de residências, formação e master classes para os preparar para trabalhar no mercado europeu e para um público internacional. No segundo ano, os participantes são inseridos por via de marketing internacional e campanhas publicitárias, uma digressão por festivais
europeus e apresentações ao público e a profissionais europeus por escritores e tradutores de renome (os nossos embaixadores cela) e organizações literárias. 

Os autores e tradutores participam em campanhas internacionais, festivais literários em diferentes países e numa rede de trabalho que proporcionará contacto entre todos os participantes.
Kick-Off: Hay Festival Segovia (Espanha)Tinto-no-Branco- Festival Literário de Viseu (Portugal), Book Fest (Roménia), Pisa Book Festival (Itália), Lev-Literatura em Viagem (Portugal), Passa Porta Festival (Belgium), Wintertuinfestival (Holanda) recebem os autores e tradutores do projecto CELA.


Parceiros:
Booktailors
Escuela de Escritores
Flemish-Dutch House deBuren
Passa Porta
Pisa Book Festival
Wintertuin

Biografia:  
VALÉRIO ROMÃO

Ano de nascimento: 1974
Nascido: França
Vive e trabalha em: Lisboa
Traduzido em francês, italiano, inglês e sueco
Finalista do Prix Femina (2016), em França, com a sua primeira obra traduzida neste país, Autisme
Publicou três romances, três livros de contos e duas peças de teatro em Portugal
Um dos mais aclamados escritores contemporâneos em Portugal






Sobre Valério Romão:


«Raramente penso no leitor. Eu próprio sou o leitor, deixe-me colocá-lo desta forma. Pretendo dar ao leitor aquilo que eu gostaria de receber: uma experiência enriquecedora, algo confuso ou comovente. O importante é que não seja entretenimento.» A aparição penetrante de Valério Romão enche o espaço. O escritor português é simpático, mas a sua presença intensa carrega algo pesado, o que, em parte, se deve ao seu olhar penetrante: Romão tem olhos grandes e escuros, os quais parecem estar continuamente arregalados. Porém, é uma ilusão, porque, de resto, Romão dá ares de estar perfeitamente relaxado. Sem hesitação, fala acerca da sua escrita, da trilogia que acabou de concluir e da sua juventude.
«Sempre fui um leitor. Nasci em França, onde vivi até aos dez anos
de idade. Enquanto português entre franceses da mesma idade, fui sempre um estranho. Os livros são, então, a única porta de acesso para o resto do mundo, especialmente porque ainda não existia a Internet. Julgo que crianças que passam bastante tempo sozinhas acabam por se tornar boas leitoras.»
Já de volta a Portugal, Romão viveu, por algum tempo, no Algarve, até que partiu para Lisboa para se dedicar aos estudos. Ele opta por filosofia, um curso que ainda revê na sua escrita. «Tenho formação
filosófica, pelo que escrevo de forma bastante contemplativa.
Especialmente em tempos de polarização e contradições, permanecer racional é uma atitude bastante radical. As pessoas ora são muito de esquerda, ora muito de direita. A subtileza está a desaparecer, e no meio disto tudo, tento que o meu trabalho seja racional.» Romão franze as sobrancelhas e surge uma ruga na sua longa testa . «Isto não é um ponto de vista político. Simplesmente observo. Não cabe a um filósofo emitir a sua opinião.»
Os meus textos raramente são descritivos. Não perco tempo com o cenário, locais ou a aparência das minhas personagens. Uma vez, um crítico disse-me: os seus livros poderiam ter o dobro da espessura que têm se descrevesse mais.» Romão ergue os ombros. Ele prefere descrever ações, pensamentos ou sentimentos. «Vivemos numa época em que a cultura visual se tornou essencial, e sinto a necessidade de rejeitar tudo isto. Nós somos inundados com imagens. Deixemos, então, a literatura girar em torno daquilo que não é visível.»
Esta escassez em termos descritivos encaixa-se num escritor que se afasta de arrebiques. Romão fala de forma séria e praticamente não vai à procura de palavras. «Acho que é um grande elogio quando as pessoas me dizem que sou lúcido», diz ele, novamente com aquele olhar penetrante característico. «Se uma ideia é suficientemente boa, ela sobreviverá despojada. Quanto mais pura, mais poderosa.»
«Ainda sou um leitor. Julgo que cinquenta por cento da minha escrita consiste de leitura. Todos os autores começam por ler, copiar e imitar os seus ídolos. Consigo sempre encontrar inspiração em outros livros», diz Romão, e, de forma praticamente impercetível, a sua atitude muda. No início, quase que não dá para notar. Ele continua a falar acerca da sua visão enquanto escritor e da forma como recolhe o material. Porém, o seu olhar pesado parece dar lugar a outra coisa. Primeiro, de forma cínica, diz: «Todos os escritores são ladrões.» De seguida, com um sorriso reprimido: «Roubam material de livros e filmes, mas também das suas próprias vidas. Esta liberdade tem de ser reivindicada.» Então, surge um brilho no seu olhar penetrante e as pregas ao redor dos seus olhos ganham alguma vida: «Uma pessoa vê alguém a andar na rua e pensa: Aquele é um personagem interessante, passa a ser meu!» E escapa-lhe um sorriso de escárnio.

Testemunho: 

Conto de Valério Romão


NATALYA

Assim que soube que o problema era evasão fiscal liguei ao meu contabilista
         ó Zeferino, mas que porra é esta, tu explica-me lá que porra é esta,
disseste-me que tinhas tudo sob controlo, para ignorar as cartas das finanças que tratavas de tudo, tu explica-me que porra é esta,e à Misé, a quem há apenas dois dias dera um anel de zircónio muito decente,
         temos de devolver a jóia, princesa, depois explico-te
lavei o bucho com dois calmantes e meia garrafa de vodka, estendi-me no sofá e meti o portátil no chão a vomitar folhas de Excel para que, na eventualidade de alguém chegar, a minha interrupção de realidade passasse apenas pelo cansaço inevitável que acomete até os mais labutadores.
Foram horas de sono polvilhado de imagens perturbadoras, a miúda a ver o pai ser algemado e escoltado até ao carro da PJ, no qual cuidavam de me proteger a cabeça à entrada para evitar que os pudesse processar por maus-tratos, como nos filmes, e a Misé tentando conter um choro incessante nosbraços de um inspector mais propenso ao consolo daqueles que ficam, asentença sumária sem possibilidade de recurso, que com o IVA não se brinca,
         esperávamos que com a sua idade e história contributiva soubesse disso, senhor Fonseca,
e eu a sacudir do capota a água com muitos nomes:
         foi o contabilista, lhe garanto, e o director financeiro há-de ter tido parte nisto, que um homem na minha posição tenta apenas traçar um caminho de futuro para a empresa, não se mete nas folhas de cálculo da vida para tentar sacar uns trocos ao estado, não consegue, não tem tempo, mas o veredicto é rápido e isento de quaisquer espinhas de dúvida, culpado, mínimo cinco anos — com bom comportamento — e a vida ou o que dela resta esboroa-se sem complacência apesar do discurso do empreendedor que semeou empregos pela comunidade.
Acordei com a vozinha da Natalya a dar-me um responso 
          o sénhior sábie que a dotora não gosta qui o sénhior dúrmia áquie, não sábie, avinagrado pela caldeirada de luzes a trespassar-me as pálpebras,reticentes à vontade de desapertarem o abraço, e com a Natalya a passear o aspirador repetidamente à volta da minha cabeça como se não houvesse sala e pó além daqueles três metros quadrados à volta do sofá, eu, bilioso,
         tens visto a Crimeia, Natalya, aquela confusão, aquela vergonha, Natalya, ou ainda estás demasiado ocupada com aquele teu projecto de compendiares em registo de esquisso todas as pichas dos Olivias,
         que eu já vi esse caderno, Natalya, um Moleskine dos chineses que a Maria Leonor me trouxe na ponta dos dedos, tremelica,
         quorror, quorror, tu já me viste isto
a mão esquerda a tapar o sarcófago da boca
         são só pichas, Leonor, são só pichas
         mas têm nomes e idades, Zé, olha aqui por baixo
a apontar para os teus gatafunhos em cirílico
         todas as pichas têm nome, Leonor, e não temos nada a ver com a
vida privada da miúda
        mas tu achas que ela já viu esta gente toda
        ela tem idade para já ter visto muita coisa, Leonor, vai masé pôr isso
onde o encontraste quainda apanhas uma doença
        ai que tens razão, quorror
e lá foi ela calçar umas luvas salmão de lavar bidés para voltar a meter-te na mochila o compêndio anatómico das tuas aventuras por terras lusas, Natalya, já viste se tivessem sido os miúdos a apanhar-te isso, as perguntas que não te fariam quando os fosses meter na cama, Natalya, esquece as princesas mágicas e o coelho da Alice, as crianças são crianças, têm o arrojo de quem come com os cotovelos na mesa e em menos de nada te rebentavam essa couraça de anjo que lhes emprestaste aos olhos a troco de beijinhos e de os velares noites afora, saramposos ou constipados, na educação a gente só precisa falhar uma vez, Natalya, meia vez apenas, se quisermos ser correctos,
       tu achas que a gente a deve manter, Zé, uma miúda com esta idade e
já tão rodada
       e eu, deitado, a ler um mau livro e a fingir que é tudo normal, Natalya,
toda a gente a dormir com toda a gente, numa orgia de coelheira
       o importante é que a miúda é trabalhadora, Leonor, e além disso as crianças adoram-na
       por isso, mesmo, Zé, já viste se os miúdos descobrem, o choque que
não vai ser, já pensaste nisso
a argumentar contra mim próprio — tanta picha, Natalya, uma floresta infindável de manguitos — apenas para contrariar os assomos puritanos da doutora
      os miúdos nesta idade já sabem tudo o que têm a saber, Leonor, não vamos fazer disto um drama
e a pensar porque me recusaste até a magreza de um broche
      o sénhior meita isso pra dientro, dôtor, meita isso pra dentro ou eu
contio à dotora
      eu que de bom-grado largava já a Misé, duas vezes mais velha que tu e não sei quantas vezes mais cara, se me deixasses levar-te, semana sim semana não, a comer um gelado pós-coital, num hotel do Estoril de onde se vê um mar que nos faz ainda mais pequenos do que já o somos
     ela nunca mais trouxe aquele caderno nojento, que eu revisto-lhe a mala todos os dias, mas mesmo assim
     nada que tu tenhas na terrinha de onde fugiste, Natalya, aquele enclave entre um lago empestado de fragatas russas e o brilho compósito das crianças de Chernobyl
     ó Zé, e se ela também lhes tira fotografias com o telemóvel
     e nem imaginas como estiveste perto de lá regressar, directa daqui para a Portela e da Portela para Kiev, num Tupolev pintado a trincha, não tivesse convencido a Leonor de que seria impossível distinguir uma picha de um acidente de carro numa fotografia que tirasses, por causa da resolução do teu telemóvel rupestre com um ecrã do tamanho de um selo, mas ela
     podes até ter toda a razão do mundo, mas não estou descansada.
Quando do tribunal nascer lavrada uma declaração de insolvência, terá deixado de haver há muito tempo cavalos aos domingos, festas de aniversário temáticas e a segurança aristocrática do colégio privado. A mão enorme do arresto de bens não se esquecerá de gatafunhar onde nem a Maria José se conseguirá lembrar de ter escondido a última das jóias de família. A casa será invadida por uma trupe de angolanos que postarão no Facebook as fotografias da melhor vista sobre a cidade até ao liminar fastio. Tudo o que temos agora viverá para sempre por detrás de qualquer porta fechada, numa arritmia de espectro. Deixa-me contar-te da minha casa num monte alentejano, Natalya. De
como poderíamos ir para lá juntos, cada qual a fugir do seu inferno muito próprio, e eu era capaz de juntar uns trocos que nos durassem até mesmo depois da minha morte, se nos convertêssemos ao mantra da simplicidade, tu e eu e aquele teu caderno onde incipientemente desenhas em negativo especular a carne mais sozinha do mundo. Não te garanto que desenhássemos todos os dias ou com tanto afinco, Natalya, e sobretudo com tanta variedade temática. A custo conseguiria compreender um
embeiçamento casual pelo rapaz da tua idade que fizesse a entrega do pão, e terias de mim a certeza de uma anatomia pronta a corresponder ao teu desejo como só um corpo inteiro e justo o pode fazer, Natalya, e o mais perto a que chegarias da ruidosa implosão ucraniana seria pelas manchetes dos jornais, que em caso algum compraríamos.



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