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Organização é ainda uma abstracção cultural (crónica)


Organização é ainda uma abstracção cultural


Voltar a efectuar a matrícula numa escola primária é uma provação aos ensinamentos cristãos.
Toda a paciência que se tenha, toda a tolerância, toda a bondade são, no meu caso, insuficientes para aguentar, novamente, o inferno de um impensável e indecifrável labirinto burocrático. Com pouco mais do que a idade do meu filho eu ia matricular-me. Era horrível. Eu levava tudo, mas não podia assinar nada. Se faltasse algum documento, um sinal esférico (nada de cruzes) no local devido, tinha de voltar a casa, pedir o que faltava e esperar, repetidamente, horas na fila.
Hoje, véspera do meu aniversário e com mais trinta anos do que o meu filho, enfrentei, outra vez, os espíritos malignos barricados atrás do balcão. Tenho a certeza de que Deus me está a castigar. Vejo a resposta formatada nos olhos de quem me atende
“Falta…”
para incentivar o serial-killer que há em mim, o negro mais negro do lado negro da Força.
Ontem completei uma candidatura para uma universidade estrangeira. Não tive de ir lá. Preenchi tudo online, digitalizei os documentos, recebi uma referência e já está.
Hoje fui, pela segunda vez, à escola para matricular o meu filho. Antes de irmos pela primeira vez, a minha mulher telefonou e perguntou sobre o que era necessário. Espanto ou nem por isso: Quando chegámos à secretaria pediram-nos documentos diferentes. Primeira tentativa falhada. Hoje, faltava um outro documento que não sei como vou obter.
Abstracção da parte de quem organiza alimenta o instinto assassino da minha parte.
Depois da abstinência, as matrículas são o melhor método contraceptivo. Dá vontade de sair da escola e entrar num qualquer hospital, ou sei lá onde se faz isso, e esterilizar a capacidade reprodutiva. Corta aqui, cola ali e acabou-se.
Saí dali quase a correr e parece-me ter ouvido umas três ou quatro asneiras. Se não me engano, era a minha voz…
Quando vinha a conduzir para casa lembrei-me de uma frase dita por uma professora quando passou por mim. Estava a dialogar naturalmente com um aluno:


Stôra: O Pedro foi para o funeral da avó.
imberbe: Coitado.
Stôra: Já sabes que estas coisas é assim

A imperfeição gramatical do ensino institucionalizado era coerente com o que eu sentia:
Eu pouco tinha a dizer perante a anomalia organizacional.

Depois, fiquei preso à frase, como um todo, e aos seus constituintes:
“Já”, “sabes”, “estas”, “coisas” ,“é”, “assim”

O imberbe era…imberbe e, no entanto, segundo a professora, ele JÁ sabia que a vida tem um resultado prático: a morte.
No entanto, a morte esconde-se em abstracções como “coisas” e “assim”, apesar de ser próxima “estas” e permanente “é”.
O Prof José Gil tem razão. Em “Portugal, Hoje – o medo de existir", o professor começa com esta frase “É a vida”. Pois é… mas não devia ser. Aliás, eu perco anos de vida com estes nervos. E as pessoas que lá trabalham arriscam a delas.
O professor tem esta frase maravilhosa:
“[em Portugal] Nada acontece, quer dizer, nada se inscreve – na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico”


Querem apostar que ele já tentou matricular um filho?

10 de Maio de 1982

perdão...

10 de Maio de 2012



Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com

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