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ENTREVISTA COM LUÍS CARDOSO, autor de "O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação"


ENTREVISTA COM LUÍS CARDOSO


















"A Língua Tétum funciona em metáforas. Eu quando digo “praia”, em língua portuguesa, em Tétum eu digo “tasí-ibun”, [significa] “boca do mar”.
Como construir esta língua portuguesa dos timorenses utilizando em vez da “praia” “boca do mar”? Em vez de dizer “vou à praia”, que é uma coisa tão sem jeito, “vou até à boca do mar”.
Nós podemos construir esta língua, dessa forma, utilizando essas metáforas todas que existem na língua tétum. Eu vou até à boca do mar. Não é maravilhoso?"

Luís Cardoso.


Luís Cardoso (n.1959), autor de “O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação” (Sextante), nasceu em Cailaco, Timor-Leste.

Dentro do actual período formativo da literatura timorense, o 5º romance de Luís Cardoso pode ser visto como contextualizado por uma temática pós-colonial.
Desde a introdução da escrita no território, pelos malaios, chineses e javaneses, até às recentes obras de autores timorenses sobre Timor passaram cerca de 5 séculos.
Com a entrada dos portugueses, entre 1511-1515, a produção escrita intensificou-se. Foram escritos livros de orações, monografias, relatos de viagens por, essencialmente, viajantes e missionários. Estamos na fase da “Literatura Colonial”, ou “Literatura Portuguesa” cujo tema era as colónias.
Até chegarmos a Luís Cardoso, é de salientar a contribuição de vários autores inseridos em diferentes géneros e temáticas.
Grácio Ribeiro, com o romance “Caiúru”, é o mais destacado representante da “Literatura Colonial”.
Na poesia, nomes como Fernando Sylvan, com “A Voz Fagueira de Oan Timor”; Xanana Gusmão, com “Mar Meu - poemas e pinturas” escrito quando o autor era prisioneiro; João Aparício, com “À Janela de Timor”, Abé Barreto, e, principalmente Ruy Cinnati, que construiu considerável obra sobre a sua relação com Timor.
Pecando por defeito, pois existem outros autores que merecem ser nomeados, chegamos a Luís Cardoso. É considerado o autor mais importante na fase do Pós-Colonialismo.
O seu recente romance,“O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação”, editado em 2013, é um texto cheio de fantasmas. Luís Cardoso aborda a culpa, a construção de uma identidade nacional e a violência que acompanhou a evolução política no território.
Luís Cardoso, apesar da sua agenda preenchida, acedeu a conversar com o Diário Digital nas “Correntes d´Escritas” (Póvoa do Varzim). Falou-se dos seus livros, de Pedro Rosa Mendes, Silvicultura, Literatura e de Timor. Falou-se muito de Timor.



A primeira “pergunta” é mais uma provocação do que propriamente uma pergunta. Estudaste Silvicultura. Agualusa, também. E Riço Direitinho, também.
Tinham alguma tertúlia, ou simplesmente não prestaram atenção às aulas?

Em Agronomia parece que as pessoas estão viradas para a batata [risos] para o feijão... não. Na Agronomia havia um “background” muito grande com homens como Ruy Cinatti e Amílcar Cabral
Agronomia foi sempre um centro de intelectualidade. O que acontece é que o Agualusa e o Riço Direitinho já estavam a despontar. Foram primeiro eles a despontar e abrir o caminho. Fui atrás deles como amizade e depois comecei a escrever também. Até que um dia o Agualusa disse assim : “Olha! Eu levo isto para a D. Quixote”. Foi o Agualusa que levou “Crónica de uma Travessia” para a D. Quixote.
Éramos quase irmãos. Sabíamos o trabalho de uns e de outros relativamente à escrita, o que é que cada um estava a fazer. Depois, foi somente um empurrão dado por um colega de faculdade.

- Hipoteticamente, não tem nada a ver com literatura, e eu pensei “bem... eles não prestaram nenhuma atenção às aulas e estiveram a discutir literatura o tempo todo.”

[risos] Não... Em Agronomia, no nosso tempo, estava lá estudando Tim, dos Xutos e Pontapés. O Engenheiro Agrónomo Tim! Era bom aluno. O Sr. Engenheiro Tim! E outra pessoa que também estava na Agronomia era o João Afonso, o cantor.


Quando leio sobre literatura em Timor, leio, quase sempre, literatura colonial ou pós-colonial. Já faz sentido falarmos numa literatura timorense, como falamos de uma literatura portuguesa, ou angolana?

A Literatura Portuguesa está construída; a Literatura Angolana também. A Timorense está em construção. Provavelmente daqui a alguns anos falaremos de uma Literatura Timorense. Tanto pode ser em língua portuguesa como em Tétum ou pode ser no próprio bahasa indonésio que muitos estudantes timorenses vão estudar na Indonésia. Dominam melhor a língua indonésia do que o próprio Tétum e a língua portuguesa. A língua em que eles escreverão será a língua que eles próprios dominam.

Dentro do território qual é a língua mais falada?

Tétum.

Língua Portuguesa é a língua oficial?

Exactamente. Estamos a tentar construir uma língua portuguesa dos timorenses. É preciso trabalho! Podemos fazer aproveitando até o próprio Tétum nesta construção. A língua portuguesa dos timorenses será uma língua entre o Tétum e a língua portuguesa.

Não será Português Europeu...
...será como Português de Angola, de Moçambique...

Há ligação temática entre “O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação” e as suas obras anteriores?

Há. Há sempre coisas que estão no primeiro livro, no segundo, no terceiro, no quarto e que vou transportando... Certas coisas que não pude dizer nos outros livros tenho construi-las nos livros seguintes. Há uma continuidade.

Este livro parece-me abordar a noção de culpa e construção de identidade nacional.
A literatura é um meio de catarse?

Eu qualifico-me sempre de contador de histórias. As histórias que conto são as histórias das pessoas, que são reais.
Sou um bom ouvinte. Ouço muito as pessoas quando vou a Timor. Ouço sempre muitas pessoas que me contam histórias. Então, tento dar voz a essas pessoas. O meu papel é dar voz a essas pessoas. Não sou eu, mas são elas que fazem essa catarse.
Há muita gente que teve essa consciência de que Portugal abandonou Timor. Ficou magoada!
Obviamente que, politicamente, eu teria uma outra apreciação, mas essas pessoas reais... essa mágoa que existe nessas pessoas... Não sou eu. Estou a dar voz a estas vozes.

É também uma afirmação como timorense o facto de escrever sobre Timor?

Sou escritor timorense e pretendo fazer uma literatura timorense em língua portuguesa.

Não se vê a escrever sobre outra temática?

Não, provavelmente não teria tanta acutilância.

Sobre Portugal, por exemplo?

O amigo Pedro Rosa Mendes [antes da entrevista falámos sobre “Peregrinação de Enmanuel Jhesus”, de Pedro Rosa Mendes] provavelmente escreveria muito melhor do que eu. Eu agradeço imenso ao Pedro Rosa Mendes ter posto o dedo na ferida de Timor que me fez doer. Há muitas coisas que são lá utilizadas que me fazem doer como timorense.
Poderia escrever sobre Portugal, sobre o problema dos portugueses mas eu não teria tanta … sensibilidade para abordar o tema. Os portugueses provavelmente ficariam chateados comigo porque sei que os portugueses são assim. Dizem “nós podemos falar mal de Portugal, mas ai de ti que fales mal de Portugal” [risos]
Quando Pedro Rosa Mendes põe o dedo na nossa ferida, sentimos essa dor, mas achamos, muitas vezes, que nós é que deveríamos ter feito esse papel que Pedro Rosa Mendes fez. Devíamos ser nós a fazer isso.

...como é uma visão exterior consegue ter uma outra distância...

É. Eu gostaria de meter o dedo na nossa própria ferida. Nos meus livros tenho feito isso. Em todas as minhas entrevistas também. Nós temos uma ferida muito grande relativamente a todo o aspecto político, todo o aspecto da construção da identidade e da nação.
Obviamente que não teria tanto à vontade a escrever sobre Portugal. Gostaria! A matéria é igual, mas... o meu amigo português vai dizer “ouve lá! Não fales por aí, não vás por aí que tu não sabes nada disso. Vives cá em Portugal, fica por aqui, escreve sobre a tua terra, mas não fales sobre a minha” [risos] Este é o meu receio que me faz não escrever sobre Portugal. Talvez um dia o faça...

Timor tem muitas culturas: portuguesa, indonésia... como é que um timorense consegue conciliar estas culturas?

Timor, pelo facto de ter vários grupos etno-linguísticos, sempre viveu neste “caldo”. Os timorenses sempre souberam relacionar-se uns com os outros em diferentes línguas. Então, têm esta facilidade de absorver outras línguas. Por exemplo, se tu fores falar com um timorense em língua portuguesa, ele tem muita honra em que fales em língua portuguesa. Ele sente que sabe. Se eu falar em Tétum, ele sabe. Podes falar em língua portuguesa que ele fala muito bem.
Nessa história toda de ocupação de Timor, primeiro a ocupação japonesa, depois a ocupação das Nações Unidas...isso tudo...faz com que os timorenses sejam poliglotas, por natureza. Se fores ter com um timorense, ele fala língua inglesa, fala bahasa indonésio, fala mal, mas fala alguma coisa de língua portuguesa e outras línguas quaisquer, se estivessem lá, ele falaria.
Há essa capacidade de absorver. Mas ao mesmo tempo, falando de crianças, as crianças têm a construção do seu imaginário feita em Tétum.
A Língua Tétum funciona em metáforas. Eu quando digo “praia”, em língua portuguesa, em Tétum eu digo “tasí-ibun”, [significa] “boca do mar”.
Como construir esta língua portuguesa dos timorenses utilizando em vez da “praia” “boca do mar”? Em vez de dizer “vou à praia”, que é uma coisa tão sem jeito, “vou até à boca do mar”.
Nós podemos construir esta língua, dessa forma, utilizando essas metáforas todas que existem na língua tétum. Eu vou até à boca do mar. Não é maravilhoso?


Como é que transferiu a imagética timorense, do Tétum, para a língua portuguesa?

Todo o imaginário Tétum é oral. Nós falamos Tétum, e toda a tradição da literatura oral timorense é, sobretudo, feita de sonoridade. Eu tento ir buscar essa sonoridade no Tétum, principalmente, e reconstruir essa sonoridade na chamada literatura escrita; fazer essa transposição. Quando escrevo, normalmente leio em voz alta.

Nota-se o ritmo poético. Vem da literatura oral?

Isso.

Podia escolher contar a história de várias formas. Escolheu contar através de uma sandália, a esquerda do lado do coração e que começa por ser maior do que os pés. Porquê essa simbologia?
Porquê colocar a sandália como narradora?

Eu julgo que vocês, os críticos literários, fizeram uma bonita apreciação sobre isso. E adorei imenso porque compreenderam perfeitamente o que eu queria dizer quando utilizei a sandália para ser a narradora. De facto, é sobre os pés que nós colocamos o nosso peso. E o nosso peso traz a história de cada um, com as nossas frustrações, com as nossas esperanças. Tudo isso prostramos sobre os pés. Ora bom, normalmente o peso cai sobre uma sandália que, provavelmente, teria durante esse tempo o acumular de uma série de coisas que gostaria de contar.
Através disso seria a posição directa do coração e do outro lado a razão. Funciona sempre esta duplicidade. E então tento dar voz a um objecto que, provavelmente, nunca teria voz. Acho que é por cima da sandália que nós apresentamos todas as nossas esperanças, ilusões.  Foi assim para contar a história de Timor. É apenas um objecto que me serviu maravilhosamente. E estou agradecido às sandálias [risos].


Que dificuldades é que teve, a nível de técnicas narrativas, quando estava a escrever?
Não pensou em mudar, enquanto escrevia, devido às dificuldades?

Obviamente que foi uma questão muito bem estudada. Quando partimos para a escrita, no pensamento para a escrita já está tudo estudado. Ao colocar, precisamente, a questão das sandálias, é preciso conter um bocado a voz das sandálias, da narradora, porque há histórias que contam-se por elas próprias: a história do Pigafetta,  a história do Sakunar, a história das vozes femininas, da avó Aurora, da tia Isadora. Essas vozes depois têm voz própria no livro. Mas a sandália tem de conter um bocado a voz. Também serve de ligação entre as vozes.


Há uma componente sexual muito forte no livro. Essa componente sexual tem relação entre colonizador/colonizado? É uma relação de força?

A subjugação através do sexo. Aliás, disseste muito bem no teu artigo: tentar dominar o outro através do sexo.

Como é que se sente a ser estudado numa tese de doutoramento no Brasil?

É uma maravilha. Eu acho que qualquer escritor gostaria que a sua obra fosse conhecida no meio universitário. É fabuloso. É uma honra e uma coisa única, mas ao mesmo tempo uma responsabilidade porque às vezes  sinto que entrei neste mundo literário para não ter essa responsabilidade, mas afinal tenho essa responsabilidade.
Estudam até ao mínimo pormenor, escalpelizam tudo...ontem vinha a falar com ela [doutoranda que esteve em Portugal para estudar a obra de Luís Cardoso] e disse-lhe “vou aproveitar as tuas ideias para falar sobre o meu livro. Não me tinha lembrado disso...” [risos] Ajuda o próprio autor a falar da sua obra.

...é a tal visão do exterior...

É isso mesmo, mas uma visão estudada. São académicos que estão a estudar certos traços...com respeito. Ainda bem que nos ajudam a compreender.

Não se sente um pouco “despido”?

Obviamente, mas isso é saudável.




Mário Rufino







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