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A Doença da Felicidade (Abysmo), de Paulo José Miranda








Aceitamos a demanda pela felicidade como uma condição genética do ser humano. Empreendemos os nossos esforços diários para a construir sabendo que, num acontecimento alheio à nossa vontade, tudo desaba. Somos Sísifo empurrando a pedra. Ao sermos suplantados pelo peso da vida, recorremos a químicos, a terapêuticas, a afectos. A infelicidade é uma anomalia. E recomeçamos a procura. A contemporânea ligação do ser humano à felicidade tem a sua génese na filosofia e em pensadores como Sócrates, Platão, ou Aristóteles. Paulo José Miranda (n.1965; Paio Pires) convida o leitor a mudar de paradigma. «A doença da felicidade» (Abysmo) é um ajuste de contas, um livro de vingança, mas não na forma que o leitor imagina, quando o começa a ler. O objectivo (do autor? do personagem?) é de falsa simplicidade: “Escrevi por duas razões: saber o porquê da minha vida; saber mais acerca da arte em geral e da minha em particular.”

Paulo José Miranda coloca-se como autor e personagem de um texto pleno de ironia, subversivo e provocatório. O seu avatar é fundamental na miscigenação entre a realidade e a ficção. Este universo resulta do jogo de fingimento em que o autor utiliza a ciência para eliminar uma doença: a felicidade.
“A felicidade é uma doença genética pronta a rebentar em determinadas circunstâncias da vida, que o doente nem sabe nem pode saber quais são. Com meu pai, a eudaimonina passava a ter um nome e uma morada.”
M.S. Bullard, pai do personagem Paulo José Miranda, é o precursor do estudo da eudaimonina (neologismo criado pelo autor), que é a substância (fictícia) indicada como provocadora de felicidade. A Eudaimonologia é o ramo da medicina que estuda os desequilíbrios hormonais que levam à produção pela hipófise da eudaimonina.
Eudaimonia (palavra grega) pode ser traduzida por felicidade, embora possa ser traduzida também por prosperidade, bem-estar ou fortuna. E existem grandes diferenças entre o significado das traduções. O autor utiliza os interstícios entre os significados para construir uma nova perspectiva.
Em detrimento da dialéctica grega, virada para o debate e compreensão dos interlocutores e temas, o entendimento deixa de ser procurado na palavra. A linguagem não é o espelho da mudança; deu lugar à substância química e tudo o que a provoca. É na eudaimonina que reside a génese desse grande vírus que tem formado a consciência humana.
O autor rompe o binómio entre a felicidade e o Bem; entre a infelicidade e o Mal.
Para Aristóteles e Platão (com irrelevantes diferenças entre ambos para a análise desta obra), a justiça, a coragem e a sapiência, aliadas à bondade, eram o percurso até ao último estádio de felicidade: a Eudaimonia.
Através da observação empírica, o Dr. M.S. Bullard formula novas hipóteses. Os mecanismos de observação, com as novas tecnologias, são mais plurais e não se concentram na filosofia. Desta forma, a vertente moral é separada da felicidade. Novamente, há binómios que são destruídos e uma nova relação de interacção nasce.
“A doença da felicidade” mistura elementos biográficos com a ficção na interpretação pelo personagem dos apontamentos do pai.
A relação filial mal resolvida, com o pai e com a mãe, é adjacente à investigação da felicidade. O filho tenta recuperar a memória do pai, a quem assim o chama por mera formalidade. Na verdade, M.S. Bullard nunca foi o seu pai. O médico abandonou o seu primeiro casamento e o filho para prosseguir os estudos. O pragmatismo científico suplantou a intangibilidade dos afectos.
A miscigenação de géneros é, também, força fundamental neste texto literário. A ficção encontra no ensaio a forma mais eficaz para se traduzir em especulações, incertezas e investigação.
O personagem recebe os apontamentos do seu pai e, em tópicos, explica a ciência em simultâneo com a demanda do conhecimento de si próprio. É uma viagem ao passado exposta na aristotélica organização de introdução, desenvolvimento e epílogo.
Paulo José Miranda, vencedor da primeira edição do Prémio José Saramago, regressa com um romance provocador, inteligente e demonstrativo das imensas capacidades do escritor.

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=771217

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1 Comentários

macy disse…
"O autor rompe o binómio entre a felicidade e o Bem; entre a infelicidade e o Mal."
Uma provocação à qual se torna difícil resistir!
Obrigada mais uma vez Mário, como é bom e "provocante" ler os teus textos!
Teresa Carvalho