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"Um Copo de Cólera", de Raduan Nassar





Raduan Nassar, Prémio Camões 2016, é um escritor com poucos livros publicados, muito limitada exposição mediática e escasso interesse em dar entrevistas. E é, no pouco que escreve, extraordinário. "Lavoura Arcaica" e "Um Copo de Cólera", ambos publicados em Portugal pela Companhia das Letras, são sublimes exemplos de literatura.
"Um Copo de Cólera" foi publicado, pela primeira vez, em 1978, oito anos depois de ter sido escrito. "Lavoura Arcaica" saiu em 1975. "Menina a Caminho", colectânea de contos, sairia em 1997 no Brasil.


Em “Um Copo de Cólera”, uma amante jovem, jornalista de profissão, espera pelo personagem principal, homem de meia-idade com alguma riqueza. Depois da espera, o casal tem uma noite de sexo intenso – magistralmente narrado por Nassar - antes de entrar na rotina diária, igual à de tantos casais. No entanto, a rotina não traz estabilidade. Há uma inquietação emergente, lenta, que se irá transformar em violência. As expectativas não cumpridas, tanto do homem como da mulher, revelam uma complexa relação de domínio e, em consequência, da negação do outro como indivíduo. Essa relação ultrapassa o vínculo entre os dois amantes. No máximo da sua agressividade, o personagem diminui o casal que trabalha em sua casa. A dualidade dominador-dominado deixa de se reduzir à questão de género ("tenho colhão, sua pilantra, não reconheço poder algum!") e expande-se para a realidade social e política do país ("ofendido e humilhado, povo é só, e será sempre, a massa dos governados; diz inclusive tolices, que você enaltece, sem se dar conta de que o povo, em geral, segundo a anuência de quem o domina").
A explosão acontece por algo exterior ao relacionamento entre as personagens. São as ordeiras formigas que fazem com que este homem de meia-idade fique "puto com a sua exemplar eficiência, puto com essa organização de merda que deixava as pragas de lado". É o gatilho de algo que esteve a fermentar durante muito tempo.
Essa violência é, sobretudo, uma catarse. O ciclo narrativo termina com o mesmo título com que começa...mas não da mesma forma.
O primeiro capítulo tem o título de "A Chegada", assim como o sétimo e último capítulo.
 A substancial diferença assenta na voz narrativa. A perspectiva deixa de ser masculina e passa a ser feminina. O fim da catarse é o despojamento da segurança do indivíduo. E aí a mulher assume o papel de mãe e de amante. Será a voz feminina a narrar que o homem "fica deitado de lado, a cabeça quase tocando os joelhos recolhidos, ele dormia (…) " Ela passa a exercer o domínio.

"Um Copo de Cólera" consegue em poucas páginas captar a complexidade de uma relação primária, de domínio, entre macho e fêmea, entre classes altas e classes sem privilégios. O jogo entre a perspectiva e a realidade causa fissuras no comportamento do ser humano. É na frustração que a cólera assenta; na frustração do "eu", mais do que no acto e nas palavras de o "outro".
Raduan Nassar delapida as frases para exponenciar a tensão. "Um Copo de Cólera" é tanto em tão poucas páginas. Notável.





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