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A Porta Estreita, de André Gide

 



Numa primeira leitura, à luz do século XXI, “A Porta Estreita” (Cavalo de Ferro) é uma narrativa, mais uma narrativa, sobre um amor não correspondido. Os dilemas das partes têm traços que nem nas localidades mais recônditas do ocidente já se encontram. Mas num olhar mais atento, reconhece-se a luta entre hábitos herdados e a vontade mais visceral. E isto adivinha-se intemporal. 

André Gide (1869-1951), vencedor do Prémio Nobel, fez literatura dos seus dilemas. Formado por uma educação puritana, Gide casou com uma prima, mas anos mais tarde assumiu a sua homossexualidade. A tensão entre moral e individualidade denota-se em obras como “O Imoralista” (uma das suas principais obras) e “A Porta Estreita”. 
Nesta novela, publicada em 1909, o mundano é subalterno ao divino. Jêrome, cujo pai morreu cedo (tal qual o de Gide), passa férias na Normandia, na casa de um tio. Lá conhece a sua prima Alissa. As suas conversas fogem da superficialidade e aprofundam temas como a religião e a poesia. Apaixonam-se, mas cada um vive a paixão de forma distinta. Jêrome entrega-se, mas as palavras bíblicas norteiam Alissa. Os evangelhos têm mais peso do que as juras de amor do seu primo. 
Alissa não quer passar pela porta mais larga e entregar-se a uma relação terrena. Ela almeja a porta estreita, a porta apontada por Lucas: “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque muitos — digo-vos eu — procurarão entrar e conseguirão”, Lucas 13:24.

Virado para dentro, Gide faz do ambiente e das dinâmicas sociais um contexto. O arco narrativo é extenso e Gide, para não demorar a atenção do leitor na análise social, utiliza a elipse como estratégia narrativa. Também a narração se desenvolve em diversos registos, mostrando a distância (com epístolas) e a proximidade entre ambos (com a coabitação na mesma cena). Estas estratégias também potenciam a dinâmica entre opostos e a dicotomia entre amor terrestre e uma abençoada reserva.
Jerôme, eterno apaixonado por Alissa, deseja-a e ama-a como um ser humano é capaz de amar outro. Alissa ama-o também, mas vê esse sentimento como obstáculo entre ela e o sublime. É para Deus que ela se guarda, e com Deus ele não pode competir.  
Alissa prefere ser feliz depois de morta, numa crença inabalável na Palavra de Deus e na moral católica. Dentro dela, há também essa dicotomia: seguir o instinto, acreditar no seu semelhante e não ver no amor terrestre um pecado. Em vez de se entregar aos braços de Jerôme, ela entrega-se ao sacrifício. 
O tempo não foi leve sobre “A Porta Estreita”. Esta obra essencial de André Gide apresenta desgaste. No entanto, continua a ser uma obra importante da literatura universal e um porto seguro para os viciados em literatura. 


Publicado em https://comunidadeculturaearte.com/a-porta-estreita-desditoso-e-o-caminho-para-a-santidade/

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