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"Dor Fantasma" (Porto Editora), de Rafael Gallo

 




Não é frequente encontrarmos um livro que nos roube o fôlego. 
“Dor Fantasma” (Porto Editora), de Rafael Gallo, vai-nos apertando o pescoço devagar, sem pressa, até ao sufoco.
 

Numa época em que se tenta desinfectar a prosa de sentimentos malignos, Gallo remete-nos para a negrura, fecha-nos lá dentro, e atira a chave para longe. 
A violência é intrínseca- especialmente intrínseca- e extrínseca. O que nos leva, então, a passar cada página sem qualquer aborrecimento ou arrependimento? 
Talvez seja a mesma emoção que nos leva a abrandar para observar um acidente. Desejamos que esteja tudo bem, que os participantes saiam ilesos daquela situação, mas, no fundo, sabemos que isso não vai acontecer. 
Este Rômulo Castelo, que nos assombra desde que o conhecemos, tem várias oportunidades de salvação. As pessoas à sua volta estendem-lhe a mão, mas ele boicota cada tentativa. E tudo por causa de uma abstracção. 
Ele impõe a si e aos outros a perfeição de uma composição musical, de uma obra-prima; a abstração inatingível, como em Rondeau Fantastique, peça intocável de Liszt, orienta as suas palavras, acções e sentimentos. Ele quer a perfeição, e nessa perfeição não há lugar para o desvio. 
Rômulo Castelo é distinguível pelos seus pares como um pianista virtuoso e um professor rígido. A sua rotina diária começa, ainda antes do pequeno-almoço, com a prática/ o estudo de Rondeau Fantastique. Tem o objectivo de apresentar a peça intocável na sua “tour” pela Europa. Julga ser a primeira vez que vai ser tocada e vê nessa oportunidade o seu legado. 



Um acidente mudará a realidade, mas Rômulo não sabe adaptar-se a essa realidade. 
Este anti-herói tanto comove o leitor com a sua resiliência como o transtorna e revolta com o egocentrismo e falta de empatia. O excelso pianista torna-se um inadaptado. Pior do que isso: ele não aceita em si o que vê nos outros; não assimila o desvio nem aceita que o outro se aproxime dele. Tudo é pouco quando fora da perfeição. Até ele próprio. 
Um dos grandes méritos de Rafael Gallo é a coerência no desenho psicológico das personagens em tensão crescente, dando a conhecer as camadas mais escondidas.  
O enredo é de estrutura simples, que suporta esse desenvolvimento. Não há assinável dissonância, o que permite ao leitor manter o foco em Rômulo até à “Cadenza”, solo final do artista. 
A utilização constante do verbo no presente aproxima o leitor do “acidente”, dá-lhe a sensação de que está a ver a queda de Rômulo em tempo real. A estratégia resulta, pois, o leitor lê página após página desejoso de saber do que será do pianista. 
O autor comete alguns exageros estilísticos (“No relógio digital ao lado da cama, os borrões vermelhos coagulam rápido diante dos olhos: 6h40”) que não acrescentam, antes enevoam o sentido. Tal retórica vai sendo melhor doseada ao longo do livro, o que leva a pensar se o livro não terá sido escrito em diversas etapas da vida do escritor. 
Dividido em quatro momentos, diria, de uma composição musical (Coda, Exposição, Desenvolvimento, Cadenza), é a impressão global que marca: 
- um livro a juntar aos melhores livros de autores brasileiros publicados recentemente. 
Entende-se ter sido premiado com o “Prémio Literário José Saramago”. 
Temos um livro que se afasta da sociologia brasileira, apesar de algumas alfinetadas, e se concentra num personagem sem paralelo em outros autores. 
Rômulo Castelo não é um personagem esquecível nem o livro é mais do mesmo. 
“Dor Fantasma” É um triunfo literário de Rafael Gallo.

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