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“A minha Cozinha” de Clara de Sousa (Entrevista)



“A minha Cozinha”
Clara de Sousa
Livros D`Hoje

Se há dois mundos que me agradam e se completam, então esses são o da Literatura e o da Culinária. Comer, beber e ler são parte integrante da ideia de Paraíso. Apesar da “pressão” social para nos relacionarmos com a comida de uma forma funcional, estigmatizando os que não são magros, o prazer de beber, comer e ler ultrapassa essa “pressão”. Assim mesmo e sem receios. Então quando se analisa a ligação entre os alimentos e a sensualidade, o caso ganha outra gravidade…para quem não come.
Helena Vasconcelos em “Amor, Comida e Sexo” resume, de forma brilhante, a relação histórico-cultural entre o Ser Humano e a comida “Assim, a cultura romana estabelecia a relação entre o sexo e a comida numa base hedonista, centrada no prazer, a dos cristãos numa pecaminosa, criando os fundamentos de uma condenação moral do excesso, (não é possível esquecer como a origem do pecado é representada pela dentada que Eva dá numa maçã), e a dos bárbaros numa virilidade ligada à acção e à sobrevivência.
A História, particularmente a história literária, apresenta-nos uma relação mais complexa do que o sentido primário entre os alimentos e o Ser Humano. A Literatura, a memória e a sensualidade estão ligadas não só à forma como ao uso dos próprios alimentos. Proust, por exemplo, constrói a monumental obra “Em Busca do Tempo Perdido” partindo do cheiro e do gosto das madalenas. Obras como “O Banquete” de Platão, “Madame Bovary” de Flaubert, “O Amor nos tempos de Cólera”, de Gabriel Garcia Marquez, ou o mais recente “Correcções” de Jonathan Franzen (e muitas mais) contêm em si elementos que traduzem a ligação histórica entre a comida e a literatura. Ler “Alice no País da Maravilhas” enquanto se bebe “grappa” e se come pedaços de chocolate é levar a viagem literária a outro nível. E é uma viagem que obriga a repetição.
A necessidade de partilha, a continuação da memória e o “prazer” de comer e beber e conversar são a alma de “ A minha Cozinha”.
Clara de Sousa, profissão jornalista, idade…intemporal, escreveu o seu primeiro livro de culinária. É um livro de afectos, onde se comemora o prazer do convívio à mesa e onde se demonstra, principalmente, como a culinária é uma forma de transmissão cultural e familiar.
O seu gosto pela literatura não é recente. Clara de Sousa é formada em Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras de Lisboa. E foi sobre literatura que começámos por falar: “O peso da borboleta” de Erri de Luca; “As velas ardem até ao fim” de Sándor Márai; “O Rebate” de J. Rentes de Carvalho, “Peregrinação de Enmanuel Jhesus” de Pedro Rosa Mendes e muitos mais…
Nesta breve conversa regista-se a conjugação destes mesmos ingredientes: A literatura, a gastronomia, a transmissão do património familiar e a…sensualidade.


A Clara cozinha desde os 9 anos e aprendeu muito com a sua mãe. É importante para si transmitir essa herança cultural aos seus filhos?

- Gostaria muito que eles tivessem desenvolvido a curiosidade e a pro-actividade que eu desenvolvi desde cedo na cozinha, mas admito que sou mais “castradora” do que a minha mãe. Preocupo-me em demasia com a possibilidade de se queimarem ou cortarem e fiscalizo mais. Mesmo assim, os tempos são diferentes… eu passava mesmo muito tempo na cozinha, fosse a comer, a conversar, a fazer os TPC ou simplesmente a preparar as refeições ou a “viajar” na maionese. Hoje em dia, nos seus tempos livres, os miúdos têm muitas mais opções, em muitos casos, muito mais sedutoras. Mais do que meus ajudantes, os meus filhos são, sobretudo, provadores… e são implacáveis.


Disse numa entrevista “O meu pai é um homem de demonstrar muito afecto através daquilo que dá”. O convívio em volta das suas receitas é uma forma de distribuir esse afecto?

- O meu pai é transmontano e quem conhece os transmontanos sabe da importância que a partilha de comida tem em termos sociais e culturais. Quem entre numa casa transmontana tem logo mesa posta e se não comer “ofende” o anfitrião. Eu cresci neste registo. Por um lado, uma casa de porta aberta para os amigos e para as “patuscadas”… e por outro, uma mãe que era uma referência, doméstica e não só, na arte de bem cozinhar. Uma mãe que sorria ainda mais quando a elogiavam por essa qualidade… quando lhe diziam que nunca tinha provado nada tão bom… quando lhe pediam os segredos, os truques; no fundo quando partilhavam o mesmo amor que ela pela cozinha. Nesse aspecto, eu e a minha mãe falávamos a mesma linguagem e é essa que tento perpetuar, seja com os que me estão mais próximos seja com os que estando longe e não me conhecendo pessoalmente entendem “esta minha linguagem” e a sua verdadeira essência. Nas apresentações do livro eu considero que é um pequeno mimo e é muito engraçado ver como as pessoas, que estão relativamente atentas/tensas, ficam muito mais soltas depois de comerem a mousse. Sim, é partilha – o que é bom partilha-se.


Cozinhar algo de especial só para si faz algum sentido?

- Não faz muito sentido é verdade. O desejo de partilha fala mais alto na preparação desses momentos especiais. Não consigo esse estímulo quando é só para mim, porque fico em “circuito fechado”. Com a família e os amigos é completamente diferente. Todos nós precisamos de uma maneira ou outra de aprovação – a cozinha acaba por ter os dois sentidos nessa estrada: a da partilha geradora de bons momentos e o retorno nas palavras de aprovação que dão estímulo para novas partilhas.  


Saiu da rotina em que estamos habituados a vê-la. Como tem sido a reacção do público? A pluralidade de talentos ou funções é muito invejada na nossa sociedade…

 - Tem sido uma reacção extraordinária, porque as pessoas têm possibilidade de confirmar que tudo isto é verdadeiro e vem do coração. A venda do livro só por si, para mim, não significa nada. O sucesso seria pífio e não se perpetuaria se não houvesse uma identificação, se fosse um livro pretensioso a querer ser mais do que aquilo que é. E as pessoas perceberam a razão da partilha, pelo amor que tenho a esta arte e pela simplicidade das receitas – mais do que eu, neste momento, são as pessoas que compraram o livro e que testam as receitas que melhor o promovem. E são elas que já me exigem um segundo este ano. Mas sobre isso ainda não decidi. Já li um ou outro comentário desagradável como se eu me estivesse a aproveitar da minha visibilidade mediática para fazer um livro sobre algo de que não sou especialista. Ora, a verdade é que eu não preciso de mais visibilidade e esta aventura até me poderia ter sido prejudicial. Mas quando fazemos as coisas pelas razões certas, acredito que o resultado só pode ser o melhor. Além do mais, os melhores pratos que comi em toda a minha vida foram feitos por “especialistas domésticos”. Paralelamente, sou jornalista há 20 anos e não tenho o curso de Comunicação Social e tal como eu muitos dos meus colegas e isso enriquece uma redacção, não a empobrece. A verdade é que há áreas em que a “especialidade” se desenvolve e apura com a prática. No jornalismo ou na culinária a prática já é de muitos anos.Sobre essa ideia ridícula de que só podemos ter um talento, enfim, é reveladora do espírito de quem pensa assim. Se cria inveja, paciência. A inveja corrói quem a tem. Eu prefiro olhar para uma pessoa multifacetada e sentir que ela é um estímulo para mim. Curiosamente, por causa do livro e do entusiasmo que coloco nestas partilhas culinárias, muitas pessoas ganharam ânimo para se aventurarem e testarem essas capacidades que pensavam que não tinham. O meu conselho para elas é um reflexo da minha postura perante a vida: o facto de correr mal uma ou mais vezes, não significa que vá correr sempre mal. Provavelmente só fizemos a opção errada para testarmos essas capacidades. E há-de haver um dia em que corre bem e a partir daí ganha-se a confiança necessária para que na maior parte das vezes corra bem. É tudo uma questão de abordagem, de atitude. Eu por natureza sou optimista e pró-activa, acho sempre que vou conseguir e entro em acção. Seja na cozinha, na bricolage, no jornalismo… Foi sempre assim. Já em criança era muito curiosa com as coisas que me rodeavam e que de alguma forma não compreendia ou não conhecia, fazia muitas perguntas e gostava de ter respostas que fizessem sentido, não bastava um ‘porque sim’. Se queria trabalhar a madeira, tinha de sentir a madeira, se queria treinar o meu cão, estudava e testava e insistia até conseguir, se queria assistir a um parto de uma coelha, ficava horas com o nariz encostado na porta da coelheira… e por aí fora. Isso fez-me percorrer com naturalidade e entusiasmo os vários caminhos que me trouxeram onde estou hoje.


Gastronomia, Literatura e jornalismo. Como é que concilia a sua profissão com o prazer de cozinhar e de ler?

- Fazendo uma gestão equilibrada do tempo… na lógica de “sempre por prazer” nunca por obrigação. Ter uma profissão que é uma segunda pele ajuda muito a esse estado de espírito. Quanto ao resto, há alturas em que dedico mais tempo a uma coisa, ou a outra, dependendo das fases por que estou a passar. Neste momento, por efeito do livro, acabo por dedicar mais do meu tempo livre à culinária do que à literatura, admito.


Na página do facebook sobre o seu livro escreveu algumas receitas, no dia dos namorados, muito…apelativas (Camarões de l'amour, - Frango com a fruta do pecado, Banana afrodite ou Fondue apimentado). Pode a comida ser uma forma de sedução?

- Se a comida é uma linguagem de afectos, é naturalmente sedutora. E pode também estar apimentada de sensualidade. É o que quisermos fazer dela, desde que bem feita será certamente eficaz.

 Parece-me que nem foi necessário recorrer aos seus dotes culinários para ser considerada a “mulher mais sexy de Portugal”…

-Pois eu sempre achei que a designação não fazia sentido – não fui, não sou, não serei nem nunca me senti. O que senti foi que as pessoas votavam na lógica de gostarem de nós, independentemente da parte sexy.

24 horas para se conquistar a pessoa de quem se gosta. Do seu livro, o que recomendaria desde o pequeno-almoço até ao jantar?

-A conquista da pessoa de quem se gosta não vem nas páginas dos livros… nem no meu nem nos que dizem ter soluções para tudo. A conquista da pessoa de quem se gosta só é possível com uma linguagem que não se escreve e muitas vezes nem se diz. Desculpe Mário, mas para esta não tenho a receita…


Das várias receitas que experimentei- todas excelentes- o doce de abóbora e o folhado de espinafres, bacon e chévre, ficaram deliciosos, apesar do cozinheiro. No entanto...”Pesto de Urtigas” é arrepiante. Fica bem com o quê?

- Pesto só fica bem com ‘pasta’, mais nada… seja pesto de urtigas, pesto de rúcula, pesto de espinafres ou, o meu preferido, pesto de manjericão!

 Lanço-lhe um desafio. Qual a melhor leitura para acompanhar:

Mousse de Lima – “As Formigas - Boris Vian”
Tarte de Caça – “As velas ardem até ao fim - Sándor Márai”
Salmão curado em casa – “Como água para chocolate - Laura Esquível”
Pezinhos de coentrada – “Evangelho segundo Jesus Cristo” de José Saramago

Há sempre um ingrediente secreto, algo que não partilhamos com ninguém. Qual a receita que não vimos neste livro nem iremos ver nos próximos?

-Essa já revelei na introdução: bacalhau com natas, receita da mãe. Porque ela só a revelou quando percebeu que iria partir.

O seu livro tem tido imenso sucesso. Quem já experimentou muitas das suas receitas pergunta, inevitavelmente: Quando é que publica um segundo livro?

- Mário… por favor… não me faça perguntas difíceis J


Mário Rufino

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1 Comentários

Carriço disse…
Literatura e culinária andam muitas vezes de mão dada. Nem de propósito, Mário, vem muito de encontro ao álbum criado lá no grupo, onde se vão transcrevendo receitas encontradas em livros (que não de culinária, óbvio). Quem sabe se não seria uma boa ideia para editar? :)

Abraço