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Entrevista a José Ovejero (Diário Digital)





Autor de romances, contos, poesia, teatro, livros de viagens e ensaios, José Ovejero tem sido reconhecido com diversos prémios:
Recebeu o prémio “Ciudad de Irún” de poesia pelo seu livro “Bíografia del explorador” (1993); “Grandes Viajeros” de livros de viagens por “China para hipocondríacos” (1998); “Primavera” de novela devido a “Las vidas ajenas” (2005); “Gomez de la Serna” por “La comédia salvaje” (2011); “Anagrama de Ensayo” por “La Ética de la crueldad” (2012); e, finalmente, o já mencionado Alfaguara por “A invenção do amor”
O Diário Digital teve a oportunidade de conversar com o autor madrileno a propósito do romance premiado com o Alfaguara.
Apesar de visivelmente cansado devido a problemas com os voos (o autor não veio de Madrid), José Ovejero mostrou-se muito disponível e demonstrou a sua capacidade de análise e de provocação intelectual.


“Muita gente dá-se conta de que está vivendo de uma maneira que não queria viver, e a crise não é essa. A crise é a de que não se atrevem a mudá-la.”



DD-  “A invenção do amor” é o realismo do amor contra o romantismo/idealismo do amor?

JO- Sim… Comecei a escrever porque gostei da possibilidade de uma história, dessa chamada nocturna, dessa confusão. O que se passou é que, enquanto fui escrevendo e desenvolvendo a personagem, me dei conta de que iria ser uma história de amor. No entanto, era uma história em que eu queria evitar qualquer tipo de tópico romântico, em que se ouve essas coisas de “não há segredos entre nós”, de toda essa idealização de relações que não me parecem muito interessantes, hoje em dia, como tema literário. Interessava-me muito mais falar do amor desde a perspectiva de alguém que não crê no amor, mas em que o amor não deixa de ser algo necessário, também por razões biológicas. É tão inevitável que há uma construção literária ao redor do amor. É o mesmo em relação à morte, ou à verdade e sobre tantos outros temas. A literatura indaga sobre essas coisas. Eu queria uma história realista e, no final, o paralógico é que esse realismo tem lugar através de uma história em que alguém inventa um amor impossível. Parece-me que os amores impossíveis, em literatura, têm sido muito românticos, muito idealizados. Neste, eu queria evitar esse romantismo. No entanto, digo-te que embora pareça um amor impossível é muito mais real do que muitos amores contados de uma maneira romântica.



É complexa a relação amorosa entre dois seres, não é?

Sim, porque abarca quase todas as facetas do ser humano. No amor está a relação sexual, está também a relação de protecção, está a relação de rivalidade, está tudo o que tem a ver com o próprio indivíduo, como se delimita em frente ao outro, que espaço protege numa relação. Uma relação amorosa é uma disputa. Pode ser mais ou menos amigável, mas é também uma maneira de marcar limites: Onde acabas tu, onde começa o outro… A simbiose romântica não existe. Somente existe em alguns momentos muito concretos. Toda a história de uma relação tem que ver com a história dos seus limites. Quando nos enamoramos, quase não pomos limites. Quase parece que podemos dar tudo ao outro, mas é mentira. Podemos fingir que damos tudo, mas chega um momento em que dizes “Não, isto não quero dar, ou isto não quero prescindir, etc.”. Abarca tudo, além do mais vai condicionado por uma tradição muito complexa sobre o que se sabe de amor, sobre como deve ser o amor, e isso é um dos piores venenos para as relações amorosas. A ideia de como deve ser.
A fidelidade: Há que ser fiel. É como deve ser uma relação amorosa. Porquê? Pode haver relações amorosas em que não há fidelidade. Há milhares de possibilidades, e cada casal vive-as de maneira distinta, mas frequentemente com a culpa de que, na realidade, teria de ser de outra maneira. E não. Não teria de ser de outra maneira.


Quando nos enamoramos e pomos esses limites, não nos estamos a reinventar? Não é uma ficção?

Claro que é! Nós somos ilimitados. Não só queremos dar o melhor de nós mesmos, como também damos o que somos. E o outro faz exactamente o mesmo. Por exemplo, a relação que dura leva a essa fase do realismo de renegociação. Na realidade, tudo o que havíamos prometido, explicita ou implicitamente, não pode durar toda a vida. Temos que renegociar os termos. Isto soa a muito cínico, mas não é. Penso que é o contrário. É o tentar compreender as necessidades de cada um dentro de um casal.

Com “ A invenção do amor” tenta confrontar as hipocrisias do leitor?

Sim, sim... Como eu disse, ao começar eu não tinha um objectivo claro, mas conforme se vai desenvolvendo uma personagem que faz e diz o contrário do que se costuma dizer na temática amorosa, fiquei muito consciente de que estava provocando o leitor, no sentindo útil da provocação que é obrigá-lo a pensar, a situar-se, a dizer “Como vivo eu isto?”
Este tipo de coisas em que dizes: “Creio? Não creio? Creio, mas não gosto? Não gosto e por isso não quero crer?” Há um diálogo bastante intenso com o leitor. E, pelo que têm dito os leitores, eles o vêem assim também, como uma espécie de confrontação.

A pluralidade de perspectivas sobre Clara tem o objectivo de “capturar” as diferentes personalidades de Clara?

Mais do que capturar, creio que o que estou mostrando é que cada um de nós é uma multitude. Depende de com quem estamos, de que situação, etc. etc... Parece-me evidente dizer que nós somos uma construção em que elegemos certos aspectos e deixamos outros de lado. Ao mesmo tempo, necessitava literariamente porque Samuel está a passar-se por amante de Clara defronte de gente que conhecia Clara. Se não nos dessemos conta de que uma pessoa é muitas pessoas, obviamente que a impostura de Samuel duraria pouco. Há momentos em que Samuel diz algo de Clara e a irmã diz “Clara não era assim!” E ele responde “Comigo, sim!”.
Todos sabemos que não conhecemos os outros. Conhecemos só uma parte limitada dos outros.
E eu gostava desta construção caleidoscópica desta personagem central e que, no entanto, não está. Esse é um dos desafios do romance: dar peso a uma personagem que nunca aparece, na realidade.
Samuel, de “A invenção do amor”, é a antítese de Neftalí Larraga, em “Añoranza del héroe”?

Sim porque Neftalí, personagem principal de “Añoranza del héroe”, mente e se mente. Samuel se mente muito menos; mente aos outros. Ele tem uma visão muito lúcida de si mesmo enquanto Neftalí se inventa a si mesmo, se crê a si mesmo como personagem idealizado, idealiza a sua relação amorosa e acaba fazendo todo o mundo infeliz. Ele está enganado, está criando uma ficção sobre a qual não se pode construir nada. Há ficções que são construtivas e outras destrutivas. Samuel utiliza essa ficção para chegar a coisas que são verdade. Neftalí utiliza a ficção para ocultar aquilo que não encaixa com a sua imagem ideal.

Somos o conjunto de interpretações que os outros fazem de nós?

Essa é uma parte. Afinal, o que é a identidade? A identidade tem a ver com a nossa própria percepção, com a autoconsciência, mas também com a percepção que os outros têm de nós. Um americano pode não estar de acordo com a política do seu governo, pode aborrecer-se com muitas coisas dos Estados Unidos, mas os demais o vêem como um americano e identificam-no com determinados comportamentos.
Tu podes querer dizer “Não, eu não sou isso.” Sim, sinto muito, tu és também isso. Tu és a própria percepção e a percepção dos demais.

A nossa perspectiva sobre o que vemos é, de certa forma, uma criação ficcional, também?

Claro, não conhecemos nada. No final, a discussão sobre se a verdade existe ou não, é uma discussão um pouco banal porque é indiferente se existe, ou não. Não a vamos conhecer. Só podemos conhecer fragmentos que são cambiantes, não são estáveis. Não tem muito interesse se existe a verdade ou não. É como perguntar se existe a cor roxa. Não existe. É indiferente. O que existe é que o nosso olho está feito para determinadas cores. O de outros animais não. Há animais que não poderiam entrar na discussão de se existe o roxo ou não.
Isso não significa que tudo seja relativo ou arbitrário. Só podemos viver num determinado contexto e para o entender temos que chegar a determinados acordos sobre a realidade. Esses acordos, com tempo, irão variando.

A escrita é um exercício de psicanálise para o autor?

[risos] Não, não…Eu não entendo a escrita como uma forma de “autocurativo” nem sequer de uma forma de aprofundamento psicológico. No entanto, as duas coisas são parte da escrita.
Na escrita há um prazer estético: o prazer da frase bem construída, o prazer do ritmo. Gosto muito de trabalhar no romance em que as frases têm ritmo. É muito mais amplo do que puramente psicológico. Também tem a parte sociológica. As minhas personagens não vivem numa “bolha”; vivem num contexto social, político e histórico. Tudo isso existe no romance. Sim, pode haver parte de “autocurativo”, pode haver parte de aprofundamento psicológico, mas são só fragmentos do literário.

No livro, Samuel tem pouco mais de 40 anos. Ele tem uma crise, pois faz uma avaliação negativa desses 40 anos. É uma avaliação somente individual ou posso dizer que é uma avaliação do nível nacional?

Samuel, como tanta gente da sua idade, chega à situação em que te dás conta de que tomas algumas decisões na tua vida que levaram a determinado lugar e que frequentemente não é o lugar onde querias estar.
Ele não está mal! Está cómodo e confortável. Mas se pensas no que serias ser, fazer e significar, como querias viver, quando eras jovem, depressa te dás conta de que chegaste a outro sítio.
Muita gente dá-se conta de que está vivendo de uma maneira que não queria viver, e a crise não é essa. A crise é a de que não se atrevem a mudá-la.
Há determinada segurança, expectativas dos outros, hábitos e ficas com essa forma não feliz de viver. Na sociedade passa-se o mesmo. Penso que é muito claro na sociedade espanhola onde, durante anos, nós- espanhóis- tivemos a “arrogância” de jovens, pois acreditávamos que iriamos transformar o mundo, e que seriamos os protagonistas de toda a história. Espanha crescia, era dinâmica, era aberta… ou parecia que crescia, porque nos demos conta de estávamos crescendo sobre bases económicas muito pouco estáveis e que eramos muito menos democráticos do que havíamos pensado. Descobrimos isso com a corrupção, com a falta de independência do sistema policial, etc. Então chegámos à situação em que olhámos para trás e dissemos “Nós iriamos ser outra coisa, nós iriamos ser muito melhor, e somos isto: Este país sem esperança, este país apodrecido”. E agora a questão é a mesma. O que se vai passar? Vamos seguir igual para não perder a nossa segurança, ou vamos ser capazes de inventar? Samuel inventa o amor. Vamos ser capazes de inventar uma forma distinta de democracia? Há movimentos, agora mesmo, nas ruas que pensam que sim, que podemos inventá-la; há o pressuposto de que não vão chegar ao que querem, mas entre onde estamos e onde querem chegar há muitos pontos intermédios que podem ser interessantes.



José Ovejero sai transformado no fim do livro, tal qual Samuel no fim da história?

Sim, claro…Ao longo do romance, vou escrevendo coisas que não pensei previamente. A literatura faz-me pensar profundamente nos planos intelectual e emocional, que são parte de todo o pensamento sério. Tão pouco o intelecto vive fora de um contexto, das emoções. Creio que aprendi escrevendo livros sobre as próprias relações, sobre a minha maneira de me situar nesta sociedade, sobre a “bolha” em que eu também vivo como Samuel, sobre esse isolamento em que Samuel se conforma porque é seguro. É um romance que me fez pensar sobre mim mesmo.

 Tem obra premiada em Ensaios e em Ficção. Como decide se determinado tema vai ser tratado como ensaio ou como ficção?
Não há uma decisão. É mais uma percepção de como posso afrontar um determinado tema. No ensaio que escrevi antes deste livro, “La Ética de la Crueldad”, começo a aproximar-me desse tema a partir de um romance que eu escrevi, “La Comédia Salvaje”, que é um livro muito divertido e muito brutal e cruel. Então comecei a pensar desde fora da ficção porque utilizo a crueldade. Porque sou tão violento neste romance? Que função tem a violência?
Os mecanismos de pensamento são distintos. O ensaio é pensar desde fora. A ficção é pensar desde dentro, meteres-te nas emoções e utilizá-las como trampolim, também, para a reflexão. Tem a ver com uma abordagem inicial de aproximação a um tema.

Samuel tem uma vida quase vazia. Inventar uma história enche esse vazio.
Agora é uma provocação: Um escritor é um ser vazio se não escrever?

[risos] Há muita gente que utiliza a escrita como um sucedâneo da vida. E diz que são mais importantes os livros do que a vida. Para mim, não. Para mim o importante é a vida. A literatura é só uma parte dela.
Há leitores que utilizam a ficção para escapar, para evadir-se, para viver fora de suas vidas.
Eu creio que a literatura interessante é aquela que uma e outra vez devolve-te à tua vida; diz-te “ isto é uma representação, não é a verdade, não podes ficar a viver aqui. Depois de ler, tens de regressar aonde estavas”.
Por isso, não creio que a literatura encha um vazio, embora seja verdade que em alguns casos a utilizamos para viver emoções que não nos atrevemos a viver de verdade na vida. É como os filmes de terror. Por que vemos os filmes de terror? Porque são seguros. Fazem muito medo, mas não vai acontecer nada connosco. Os filmes de terror interessantes seriam aqueles que, depois de nós os vermos, nos obrigariam a ir a um lugar obscuro. Arriscando-nos de verdade. Essa é a relação ideal entre a literatura e a vida.

Continua a dar cursos de escrita criativa através da internet?

Sim, mas agora interrompi devido ao Prémio Alfaguara [A invenção do amor]. Como passei um ano a viajar, tive que interromper todos os outros trabalhos.

É possível fabricar um escritor?

Não! E eu tão pouco o prometo aos meus alunos. Eu não lhes digo “vou fazer de vocês escritores”. O que pode fazer um curso de escrita? Primeiro: O que é um escritor? É alguém que tem uma visão original do mundo, e original é uma maneira de dizer profunda, e é capaz de vê-lo como outros não o vêem e que tem as ferramentas para contar. Eu posso ajudar com as ferramentas. A visão profunda do mundo tem a ver com a tua história, com a tua psicologia, empatia, e tantas coisas…
Às vezes é como um ciclo vicioso: se não tenho as ferramentas, não posso dizer coisas complexas; se só tenho ferramentas simples, não posso construir algo complexo. Mas se eu te dou ferramentas mais complexas, podes chegar a formas de pensamento também mais complexas. Tem de haver um fundo que eu não posso cambiar ou interferir.
  

Mário Rufino




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