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Entrevista a David Baddiel sobre "Os Judeus Não Contam"

 



David Baddiel: “Metade das batalhas sobre discriminação é sobre linguagem”

Entrevista publicada em:

https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-david-baddiel-metade-das-batalhas-sobre-discriminacao-e-sobre-linguagem/


Algo de muito interessante aconteceu com “Os Judeus Não Contam” (ed. Vogais), de David Baddiel. O livro implantou uma pergunta que, até ali, não tinha sido formulada. Achamos estranho, após milénios de perseguição aos judeus, que essa questão tenha passado à socapa por nós. O principal mérito do livro do autor norte-americano é o de nos levar por discursos relegados e esquecidos.

Motivada pela publicação de “Os Judeus Não Contam”, a Comunidade Cultura e Arte conversou com David Baddiel no Fólio – Festival Literário Internacional de Óbidos.

David Baddiel, além de ter escrito o livro mencionado, é comediante e apresentador de televisão. Nasceu em Nova Iorque, mas mudou-se para Inglaterra em criança. A sua infância foi passada no Norte de Londres. Escreveu vários romances e livros infantis. “Os Judeus Não Contam” é o primeiro livro de não-ficção do autor.

No seu twitter, a bio diz «Jew» [Judeu], também a capa do seu livro [versão inglesa]. Por vezes, a palavra tem uma conotação negativa. Quando estava a preparar a entrevista hesitei muito em usar a palavra «Jew». Talvez «Jewish» [judaico ou judeu] fosse melhor. 

Porque é que a palavra tem esse lado negativo?

A razão pela qual eu escolhi a palavra para a minha biografia e a razão pela qual eu digo sempre «Jew» (eu tento não usar «Jewish», a menos que esteja a usá-la como adjectivo) é porque quero levantar essa questão. Estou interessado no facto de, na recuperação da linguagem que ocorre constantemente, em todo o momento haver discussão sobre o que podemos ou não chamar a minorias. O problema para os judeus é que, de forma diferente a “Queer”, por exemplo, “Jew” é de facto a palavra que existe no dicionário para nos descrever.
O antissemitismo é a forma mais antiga de racismo ou discriminação. Está bem dentro da língua. Nenhuma outra palavra muda a natureza moral da descrição somente por perder o sufixo “-ish”. Isso demonstra o poder negativo, com centenas de anos, da palavra. É por isso que eu quero usar a palavra «Jew». Quero ver se é possível algum tipo de recuperação. Uma outra razão é por ser engraçada. «Jew» é uma palavra engraçada, em parte por ser tão negra.
Fiz um documentário recentemente baseado no meu livro e no fim há cerca de três minutos só de coisas engraçadas, de conversas engraçadas, que não pus no livro. Há partes em que as pessoas dizem «Sou um grande judeu», «Sou um judeu grande e gordo». A forma como se diz a palavra é engraçada e isso é por causa do ódio.

Na tradução de “Secrete Purposes”, a tradutora June hesita entre muito entre as duas palavras (Jew and Jewish), se não estou em erro. Podemos ver racismo na gramática? É como um espelho?

Passamos muito tempo a falar sobre linguagem, linguagem e raça ou linguagem e discriminação. Diria que metade das batalhas sobre discriminação é sobre linguagem. Sim, definitivamente podemos ver racismo e outros tipos de discriminação na gramática. Ao mesmo tempo, é uma loucura, quero dizer, o constante reenquadramento da linguagem para conseguir lidar com a velocidade das mudanças sociais.

É demasiado rápido…

Sim, é demasiado rápido e leva a uma posição onde quem não é membro de uma minoria está constantemente preocupado em ser mal interpretado. Eu preocupo-me com isso quando estou a falar de outras minorias. Até certo ponto, penso que as coisas precisam de se acalmar um pouco.

David Baddiel em conversa com António Prata e com moderação de Paulo Werneck – Fólio 2022 / Fotografia de Verónica Paulo

Quando está a escrever “Stand up comedy” preocupa-se com isso? Pensa que se vai meter em problemas?

Cancelado. Sim, porque tenho estado no Twitter, que é o espaço principal onde isto acontece, desde 2009, e já tive algumas tempestades deste género. Estou muito consciente das formas que isto pode acontecer. É quase uma segunda natureza para mim, agora.
Aliás, algumas pessoas já vieram ter comigo a dizer que queriam dizer algo e a perguntarem se seriam cancelados. Eu sei o que vai acontecer. De certa forma, preferia não saber. Deveríamos poder expressarmo-nos livremente sem ter uma segunda voz na cabeça a dizer que não podemos dizer desta ou dessa forma. Ao mesmo tempo, penso que algumas dessas restrições surgiram porque há vozes que não foram ouvidas antes e agora são. Estão numa dança complicada com a expressão. Alguém está errado, alguém está correto, ou alguém não deveria dizer isto ou aquilo. Para mim, é ver caso a caso. 

“Passamos muito tempo a falar sobre linguagem, linguagem e raça ou linguagem e discriminação. Diria que metade das batalhas sobre discriminação é sobre linguagem. Sim, definitivamente, podemos ver racismo e outros tipos de discriminação na gramática.”

David Baddiel é comediante, escritor e apresentador de televisão.

Como é que eliminamos a auto-censura?

Como eliminamos? É uma pergunta muito importante. Posso dizer as três reações principais a este livro na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Número um é sobre judeus que agradecem por ter escrito um livro que articula o que muitos judeus têm sentido há algum tempo. Os judeus sentem que o movimento “Woke”, que muda o que as pessoas pensam sobre as minorias, deixou-os de fora. O número dois é que pessoas progressistas, não judeus, me disseram que há coisas em que não tinham pensado e que havia assunções que não tinham percebido. Uma pessoa disse que percebia agora que o antissemitismo é o racismo que passa à socapa por ti. E a terceira, para responder à tua pergunta, é haver judeus de todas as idades que me escreveram e disseram que não contaram a ninguém que são judeus. São muito silenciosos sobre isso. Basicamente, envergonham-se disso. Há muitos judeus que interiorizaram a vergonha. O livro fê-los sentir suficientemente livres para dizer que podiam dizer às pessoas que são judeus. O alcance disso é complicado. Na ponta oposta, estão pessoas mais velhas vindas de pais sobreviventes do holocausto que lhes disseram para não contar a ninguém que são judeus, pois é perigoso.
 Há pessoas jovens que essencialmente sentem que o antissemitismo e a identidade judaica não são algo legítimo que possa ser falado nos espaços em que existem.

Os judeus foram deixados fora das políticas de identidade?

Essa é a ideia principal. Por causa da assumpção de que os judeus são, de alguma forma, parte do “establishment”, dos poderosos, ou essencialmente pessoas brancas, não tem havido necessidade de incluir os judeus. Isso está errado. Os judeus não são, de nenhuma forma, parte dos poderosos, do “establishment”. Embora os imaginem assim, os judeus não se sentem assim porque têm uma longa história de discriminação. 

Como é que se defendem quando, por um lado, são considerados menos do que ratos, como no poema de T. S. Elliot e, por outro, ricos e poderosos?

O coração do problema é que os judeus são a única minoria que tem um estatuto de sub-humanos e de super-humanos. Na verdade, o estatuto do judeu é uma única ideia: os judeus são monstruosos, feios, parecidos com vermes, mas poderosos. Pode ser resumido em os judeus serem vermes, mas muito poderosos. As pessoas antissemitas pensam que estão a dar um grito rebelde contra os poderosos porque imaginam que os judeus estão no controlo.
Os judeus não estão no controlo. Existem um ou dois judeus em posições de poder e eles pensam que todos os judeus estão numa posição de poder. A existência de Mark Zuckerberg leva a que pensem que os judeus controlam a internet. Não controlam. Acontece que ele é judeu. Isto nunca aconteceria com um caucasiano.
Um bom exemplo é o de quando os judeus têm de pedir desculpas por Israel. Numa conversa, tenho de dizer para não se preocuparem que eu não sou zionista nem apoio Israel.
Estou a fazer um documentário baseado no meu livro e entrevistei Stephen Fry. Ele disse que os cristãos brancos não têm de pedir desculpa por causa de Putin. Ele é um cristão branco. Nunca ocorreria a um cristão branco dizer que se queria desassociar dos actos de Vladimir Putin antes de falar do que é ser um cristão branco. Não sentem essa necessidade. 

Capa do livro “Os Judeus Não Contam”, da autoria de David Baddiel

Há confusão entre antissemitismo e antizionismo?

Esta confusão acontece sempre com isso dentro da política de esquerda. Os exemplos mais extremos de antissemitismo são aqueles que têm tendência a chamar de antizionismo. Eu, pessoalmente, chamo a mim próprio não-zionista, ou seja, não terei o meu judaísmo definido por Israel. Não quero saber muito sobre Israel. É um estado que fica a milhares de milhas de onde eu vivo, na Inglaterra. Se eu fosse muçulmano em Inglaterra, a falar de Islamofobia, ninguém me perguntaria sobre a Arábia Saudita, ninguém me perguntaria sobre o Irão. Se falamos, na Inglaterra, de antissemistismo, alguém dirá “então e Israel e a Palestina?” 

Tem uma hashtag no seu Twitter.

Sim, costumava ter uma hashtag a dizer #BringIsraelPalestineintoitsomefuckinghow”. Descontinuei-a porque não vejo as respostas tanto como as via, mas estão todas lá. É racismo imaginar que todos os judeus são responsáveis. É também uma outra coisa, que é os judeus terem um só Estado. Como têm um só Estado há um foco nesse Estado. Se houvesse 17 estados judeus, não seria o mesmo.

O antissemitismo actual está muito ligado a Israel. 

Não, não concordo com isso. É a forma que tem, principalmente, nas redes sociais. É quando as pessoas dizem, geralmente pessoas de esquerda, como por exemplo, Tariq Ali, que é de esquerda e falou numa manifestação recentemente, na ocupação, que o antissemitismo irá desaparecer. Isso não é verdade, pois não?! Porque o antissemitismo existe há cerca de 2.000 anos ou mais. Houve um incidente muito grande de antissemitismo antes da criação do Estado de Israel. O maior incidente. O Holocausto aconteceu pouco antes da criação do Estado de Israel. A ideia de que o antissemitismo, que está dentro da maioria das culturas cristãs brancas, vai desaparecer por causa de um conflito no Médio Oriente é um disparate.
É um disparate racista porque implica que os judeus sejam responsáveis pelo antissemitismo. Se os judeus conseguissem resolver isso tudo ficaria bem.

Kanye West foi banido do Twitter por um comentário anti-semita. As coisas estão a mudar?

Não foi banido; foi suspenso. Sim, penso que estão a mudar. Desde que escrevi o livro, há dois anos, e o livro fez parte dessa mudança, houve uma ligeira mudança. As pessoas estão mais conscientes e a incluir o antissemitismo no debate. Continua-se a pensar que não é considerado tão ofensivo como outros racismos. Para dar um exemplo, Elon Musk, que será o dono do Twitter [esta entrevista foi realizada antes da compra ser concluída], escreveu um tweet a dizer que tinha tido uma breve conversa com Kanye e que Kanye levou o que lhe disse demasiado a peito. Esta abordagem ligeira não se aplicaria se fosse uma pessoa branca a dizer algo ofensivo sobre a identidade de Kanye. Estariam fora do Twitter para sempre e provavelmente cancelados. E deviam ser, porque isso não é correto, não deveriam dizer essas coisas. Kanye não foi cancelado; ele levou uma palmada no pulso.    

David Baddiel / DR (via site do autor)

Sarah Silverman disse no Twitter: “Kanye ameaçou os judeus ontem no twitter e nem sequer está nas «trends». Porque é que na sua maioria só os judeus se pronunciam contra o ódio judaico? O silêncio é tão alto”Deixe-me endossar a questão: Porque é que na sua maioria só os judeus se pronunciam contra o ódio judaico?

Isso é complicado. A Sarah é minha amiga. Algo interessante aconteceu com isso. Ela disse isso e depois houve uma forte reação com as pessoas a dizerem que tem havido muito [discurso contra o ódio judaico]. Para ser justo, houve mais quando chamaram a atenção de Kanye, mas ainda penso, como judeu, que ela sente isso, ela sente que o silêncio é alto. Ela devia poder dizer isso sem acontecer o que aconteceu, que foi ser fortemente atacada. Se um membro de uma minoria diz que se sente assim, geralmente, nem sempre, a maioria branca e progressista tenta ouvir. Não é o caso com os judeus.  

Dar voz às pessoas de quem falamos (e não às que falam sobre essas pessoas). É esse o objectivo do seu livro?

Não. [risos] Escrevi-o em 2020. Vejo-o, em primeiro lugar, como uma análise polémica. Não tenho uma resposta para isto; estou a dizer que isto é o que penso sobre como as coisas são. Os judeus são relegados, o antissemitismo é relegado na conversa sobre racismo e descriminação. Agora a conversação está muito viva, o que é muito bom. Quando o livro saiu, muita gente estava a dizer se eu queria que os judeus tivessem o mesmo “gatilho para as ofensas”. Não sei, provavelmente não. Este livro criou um sentimento em que se existe antissemitismo então é mais ouvido do que era antes. Isso é bom. Não sou engenheiro social. Quando perguntas qual é o objectivo do livro, eu na realidade não sei. Não tem outro objectivo se não dizer que isto está a acontecer e porque está a acontecer. 

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