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"Às Cegas" de Claudio Magris

O meu texto sobre "Às Cegas" de Claudio Magris no Diário Digital:

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=568574


Magris submerge o leitor numa prosa torrencial, caótica, própria de quem tem, em si próprio, muitos mundos e muitos tempos.
O narrador, que se apresenta pluralmente nomeado, rompe com as delimitações temporais e físicas inerentes à sanidade mental.
Ele é (hipoteticamente) um louco que se multiplica em vários personagens que vivem em tempos diferentes. Desta forma, o autor torna o impossível acreditável quando coloca o narrador defronte de um computador ou a falar para um gravador enquanto narra as torturas a que ele próprio foi sujeito na 2ª Grande Guerra, ou as aventuras e desventuras por que passou no Séc. XIX.
A estrutura narrativa oferece ao leitor diversas possibilidades de leitura. A resolução do conflito interior de quem conta as suas viagens depende, também, da própria solução encontrada pelo leitor. Claudio Magris não entrega, propositadamente, o seu texto como se de um testemunho verídico se tratasse. O tempo, o espaço, a unicidade da voz narrativa e a conclusão de determinado desenvolvimento não são definidos pelo autor. O leitor, tal qual a multiplicidade de vozes existentes no narrador, tem de multiplicar os seus pontos de vista, ou leituras. É isto que é invocado. O paciente, internado num hospital psiquiátrico, dirige-se ao médico, que acreditará ou não no que, de forma diferida, ouve ou lê. O escritor convoca o leitor da mesma forma que o paciente solicita o médico.
“Ninguém sabe como soa a sua própria voz; são os outros que a reconhecem e distinguem”Pág.17
A veracidade está em jogo. A biografia, e ainda mais a autobiografia, coloca sempre a questão da factualidade.
“SIM,DOUTOR,EU TAMBÉM MENTI. Enfim, menti – o meu autobiógrafo embelezou um pouco as coisas, como acontece sempre quando se escreve” Pág.112
Surgem algumas interrogações: Que narrador /autor será este? Será um narrador que investe numa fantasmagoria, em projecções ficcionadas, que baralha o leitor? Será um narrador que demonstra aspectos biográficos numa estrutura factual? Ou será que dentro da ficcionalidade existem alguns aspectos verídicos?
Há, no entanto, um fio comum a tanta multiplicidade. A procura da individualidade, esmagada por contextos históricos, correntes ideológicas mutáveis, é o tosão de ouro procurado por este narrador, por este Jasão, o argonauta. A viagem, tantas vezes mencionada no texto, é longa e faz-se através de um mar de incertezas.
“ (…) a primeira coisa que escrevi foi precisamente aquele ponto de interrogação, que arrasta tudo o resto com ele” Pág. 9
A história, se assim se pode chamar, é subjugada à vertente especulativa, reflexiva, imposta pelo autor.
“Eu faço o melhor que sei, mas é difícil pôr uma multidão [frases/ideias/personagens] em linha” Pág. 17
Claudio Magris, apontado sucessivamente como vencedor do Nobel da Literatura, rejeita em “Às cegas” o papel centralizador do enredo e concentra-se na reflexão sobre o indivíduo. A relação entre a individualidade e a contextualização histórica, a tirania das ideologias e a inevitável formatação pelas regras sociais são sucedidas de um ponto de interrogação.
A intertextualidade entre a sua obra e personagens como Ulisses, Orfeu, Eurídice e, principalmente, Jazão potencia os elementos que fazem deste livro uma viagem pela (in)sanidade mental do indivíduo.


Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com

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1 Comentários

Cláudia S. Tomazi disse…
Olá Mário, excelente texto do livro em questão, apesar de tristezas em decorrência da guerra, pois certamente é enriquecedor ao retratar condições extremas, frente a realidade em lidar com variáveis espaço/temporais.