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"Na presença de um palhaço" (Elsinore), de Andrés Barba



«Na Presença de um Palhaço»: a demanda pela identidade





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Andrés Barba (n.Madrid; 1975) estreia «Na Presença de um Palhaço» (Elsinore), em Portugal, após ser reconhecido (e publicado) pela Granta como um dos mais talentosos novos escritores da literatura contemporânea espanhola. Escritor, tradutor e professor, o autor foi louvado por Rafael Chirbes (recentemente falecido), Mário Vargas Llosa e recolhido excelentes críticas em «The Times Literary Supplement» (TLS) e na «Lire», por exemplo.


Em “Na Presença do Palhaço”, o cientista Marcos Trelles vê o seu ensaio ser aceite pela prestigiada “Review of Modern Physics”. Esse ensaio sobre curvatura de nanopartículas por refracção luminosa precisa de ser antecedido por uma breve autobiografia. Marcos analisa o seu percurso de vida, enquanto esboça vários textos, confrontando-se com factos e decisões tomadas que moldaram o presente. Ele tem de construir, em duas semanas, essa narrativa. Durante a procura de identidade (Quem sou eu? Quem são os outros?), Marcos entende que não há uma versão sólida e fixa de si mesmo.
Um dos grandes méritos de Andrés Barba é conseguir manter Marcos, personagem principal, na “sombra”, mesmo incidindo o ponto de vista narrativo sobre ele. Marcos Trelles é caracterizado através da relação reactiva que tem com Núria, sua mulher, e com o seu cunhado Abel Cotta, que é o mais famoso palhaço do país.
Andrés Barba reduz ao indispensável a caracterização directa do personagem principal.
Marcos parece estar sempre à sombra: da mulher, que lhe foi infiel; da assistente, ideóloga da descoberta que originou o ensaio; do cunhado, cuja figura popularíssima aparece nas t-shirts dos seus alunos e na comunicação social; e da falecida sogra, cuja casa é disputada pelos dois filhos, Abel Cotta e Núria. No entanto, é ele a união – na narrativa- de todas as personagens.
Através da sátira, o autor, nascido em Madrid, elabora a crítica social e política de Espanha, num período dominado pela austeridade e desemprego.
A escrita da autobiografia é o motivo que levará Marcos a uma autognose que, no final, resultará na publicação do ensaio, metáfora da sua emancipação e exemplo de que a sua voz se torna activa. Esse conhecimento empurra-o para tempos e acontecimentos penosos. A infidelidade da sua esposa e a fria relação com o seu pai, que nunca assumiu a homossexualidade, tornam a rememoração muito dolorosa.
Andrés Barba, em entrevista a “Télam – Agencia Nacional de Notícias (Argentina) ”, afirmou o seguinte:
“Claro, el libro está muy relacionado con la figura de mi padre. Escribí¬ la novela cuando él estaba muy enfermo y de una manera inconsciente estuve todo el tiempo dialogando con la forma en la que él se habí¬a relacionado conmigo como padre y yo con él como hijo. Esa sombra de la paternidad se ve en la manera en la que todos los personajes se relacionan entre sí”
A tentativa de se avaliar pelos olhos dos outros tem um efeito contrário. Ele próprio percebe que a sua sogra era ainda mais do que demonstrava e que o seu cunhado Abel Cotta havia sido modificado pelo tempo.
As criações de Abel Cotta, palhaço profissional, são personagens tipificadas da sociedade espanhola (lembremo-nos de Herman José em “Herman Enciclopédia”, na crítica em Portugal). Mas não só. As características dos seus familiares mais próximos (mãe, irmã e cunhado) são transpostas para as personagens criadas pelo palhaço. Há um jogo de espelhos em que cada elemento se tenta identificar nessas criações. Cotta torna-se um actor político, com muita influência social. Protagoniza “shows” em campanhas políticas com actuações onde o populismo é acentuado.
“Tal como outros cómicos criavam as suas personagens com o seu talento, Abel tinha criado uma com a sua decepção. Não se tratava só de uma deceção política. Era uma deceção global: familiar, amorosa, vital (…) ”
Dessa decepção nasceu a figura de Lola Chica. O objectivo de Abel passou a ser – como Tiririca no Brasil, ou Beppe Grillo em Itália- eleger Lola Chica como deputada para destacar a inutilidade do sistema eleitoral. O lema “Vote for Lola” foi acolhido pelos adolescentes e consagrou Abel Cotta como figura nacional.
Depois… afastou-se da fama e da família. O contacto foi reduzido a alguns telefonemas entre ele e a mãe, sem relevante partilha de esclarecimento sobre a sua situação. Durante anos não apareceu. Até que, um ano depois da morte da progenitora, volta para decidir o que fazer com a casa da mãe, que é última parte da herança.
Grande parte da acção acontece nessa casa. O autor utiliza esse cenário para exercer pressão sobre as personagens. É o laboratório onde os elementos são postos à prova. Aliás, as comparações metafóricas com a Física não se ficam por aqui. Várias são as situações em que Marcos Trelles recorre a comparações e analogias com experiências no domínio da Física para ter uma ideia do que se passa e chegar a alguma conclusão. A interrogação mantém-se desde que Abel Cotta chega com a namorada a essa casa para, em conjunto com Núria, decidir se a vende ou não: O que pode acontecer quando todos os elementos se reúnem?
A coabitação de todos no mesmo espaço permite a desmistificação de algumas ideias consolidadas com o tempo. Marcos percebe que a biografia é construída pelos seus actos e pela relação com os outros. E nunca está sempre certa. Um homem conhece-se através da narrativa. Por isso, constrói-a com a visão dos outros e com a sua própria interpretação.
“Na Presença de um Palhaço” é esta demanda pela identidade protagonizada por personagens que, até certo ponto, não se conhecem nem se reconhecem por eles próprios. A mutável identificação social e individual é analisada, de forma interessante, por um dos talentos mais promissores da literatura espanhola contemporânea.

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