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Entrevista a Valter Hugo Mãe








São vinte anos de carreira literária e um livro novo. Valter Hugo Mãe celebra com os seus leitores um percurso com muitos momentos de sucesso. Faz furor no Brasil, onde ganhou o “Grande Prémio Portugal Telecom Melhor Livro do Ano” e o “Prémio Portugal Telecom Melhor Romance do Ano” com “A Máquina de Fazer Espanhóis”. Chegou aos lugares cimeiros dos tops da Islândia, com “A Desumanização”. Adónis, Caetano Veloso, José Saramago, Ney Matogrosso louvaram os livros do autor nascido em Saurimo (Angola). Em Portugal, “Nenhuma Palavra é exacta” (Porto Editora; org. Carlos Nogueira) reúne estudos sobre a sua obra: a poesia, os romances, o teatro e a literatura para a infância e juventude
“Homens Imprudentemente Poéticos” (Porto Editora) surge três anos depois de “A Desumanização”. A paisagem da Islândia dá lugar à magia do Japão. É nessa ilha que Valter Hugo Mãe dá a conhecer ao leitor as suas novas personagens.
Itaro, Saburo, a senhora Fuyu, o monge sábio, a menina cega e a senhora Kame são exemplos da capacidade imaginativa do autor residente em Caxinas. É através deles que Valter Hugo Mãe conta as sensações causadas pela sua visita à “floresta dos suicidas”, conforme ficou documentado em “O Sentido da Vida”, filme de Miguel Gonçalves Mendes (realizador de José e Pilar).
“Homens Imprudentemente Poéticos” tem do seu autor a toada poética e o prazer de narrar. O poeta não desapareceu para dar lugar ao prosador.

O autor conversou com o Diário Digital a propósito do seu novo livro

O teu primeiro romance  ["O Nosso Reino", 2004] é sobre um miúdo de oito anos; o segundo ["Remorso de Baltasar Serapião", 2006] tem um personagem com dezoito; no terceiro ["Apocalipse dos Trabalhadores",2008], o personagem tem mais de quarenta anos; o quarto ["A Máquina de Fazer Espanhóis", 2010] tem o senhor Silva com oitenta anos. 
Esta evolução foi propositada? 
Foi propositada. Os meus primeiros quatro romances, embora se tenham tornado conhecidos como a "tetralogia das minúsculas", são, na verdade, a construção de um tempo de vida humana. É como se eu pudesse abarcar uma vida inteira com a literatura. Não foi através da mesma personagem, porque não me era interessante fazer uma sequela contínua, uma saga da vida de alguém. A intensificação dos instantes fundamentais da vida é mais interessante: A infância, juventude, casamento, idade adulta e a velhice. De alguma forma, duvidando eu da minha longevidade, a literatura foi uma metodologia para eu viver velozmente uma vida inteira. 

Onde se encaixa "O Filho de Mil Homens"? 
"O Filho de Mil Homens" é absolutamente exterior a essa tetralogia, a essa lógica. Na verdade, não se encaixa em nada no meu trabalho. Hoje, com a saída de "Homens Imprudentemente Poéticos", já pode ser visível que "O Filho de Mil Homens" é um livro meio à deriva. Foi um texto que eu escrevi por uma pulsão muito pessoal, eventualmente até muito íntima, e que talvez tenha sido publicado pelo vício de ser normal publicar os meus textos. Talvez tivesse sido escrito para mim, como se não fosse necessário ter chegado a mais ninguém.  

Hoje, publicarias "O Filho de Mil Homens"? 
Talvez publicasse, mas alteraria o fim e faria algumas alterações drásticas. Talvez adensasse a tragédia e não criasse uma redenção em que, na verdade, não acredito. 

Com "A Desumanização" voltaste ao princípio... 
Foste o primeiro jornalista a reparar nisso. Com "A Desumanização" voltei à infância e com "Homens Imprudentemente Poéticos" voltei aos vinte anos. 

É um novo ciclo? 
É talvez uma nova tetralogia. Enquanto escrevi a tetralogia anterior, não a anunciei. Creio que a primeira vez que aventei a possibilidade de estar a fazer uma tetralogia foi exactamente depois de ter publicado "O Remorso de Baltasar Serapião", que foi o segundo livro. É curioso. Este é o segundo livro, também. 

Há três anos conversámos, por correio electrónico, sobre os conflitos do escritor, neste caso dos teus. Mencionaste a "violenta relação entre razão e inteligência emocional". Itaro e Saburo, personagens de "Homens Imprudentemente Poéticos", representam esse confronto?  
O Itaro e o Saburo interessam-me muito como inimigos que precisam de aprender a cordialidade. O esplendor do Japão tem muito a ver com a conquista dessa cordialidade. Por ser um lugar superpopulado, eles precisam de ser inimigos com respeito. Antagonizam-se, desentendem-se, contradizem-se e, sobretudo, rejeitam o estrangeiro, mas têm uma forma elegante e admirável de convívio.  Este Itaro e este Saburo simbolizam a maturação cultural do Japão, que vem de uma batalha contínua, constante e secular de carnificina e que, de repente, desemboca num esplendoroso bem-estar, numa esplendorosa espiritualidade de apaziguamento. De alguma forma, o Itaro e o Saburo são os indivíduos que estão numa batalha, numa fúria e numa promessa de agressão e que, eventualmente, chegam a um ponto em que atingem uma inimizade educada e respeitosa. 

Eles começam longe um do outro mas vão se aproximando, sem nunca ficar amigos. 
Exactamente. Eles aprendem a ser inimigos. 

Saburo, o oleiro, queria ser feliz. Escreveste "O Japão, no entanto, nunca definiria a felicidade assim". 
Ao mesmo tempo, o Saburo exceptua-se na cultura do Japão.  O japonês é contido e incapaz de adulterar as regras da Natureza. O Saburo interfere na decisão da Natureza. Ele ajardina a floresta, o que é uma intromissão sacrílega. A floresta, como dimensão da liberdade natural, não convida à adulteração. Por isso, ela não precisa de ser embelezada. A cultura japonesa de base propende para uma espécie de naturalização dos objectos e de todos os gestos, como se eles não fossem distintos da Natureza. Eles não têm de ser mais belos do que a Natureza. A Natureza é abraçada contendo o seu próprio grotesco, a sua própria perigosidade. A Natureza é que verdadeiramente decide o grau de esplendor que quer ter. O Saburo é um desrespeitoso cidadão. Ele tenta educar a Natureza. 

Através do jardim, o oleiro tenta amansar as feras e ganhar a atenção dos deuses. Li há alguns anos um texto teu publicado no Jornal de Letras em que falas das flores e do falecimento do teu pai. Que importância ou significado têm as flores para ti? 
 Foi numa das minhas primeiras crónicas para o Jornal de Letras. 
É tremendamente triste que as flores, indutoras de cor, de vida e de beleza imediata, sejam usadas para adornar, à custa da sua morte. Parece que as sacrificamos, embora na verdade não pensemos muito assim. A impressão que me dá é que quando asseamos os túmulos com as flores, estamos a sacrificá-las em prol dos nossos mortos. Não estamos muito distantes de outros povos que degolam as galinhas. Nós não temos a percepção de que, de algum modo, também matamos para elogiar e celebrar os nossos mortos. 

Disseste que não acreditas em redenção. Vejo muita tristeza nos teus livros. Escreveste em "Homens Imprudentemente Poéticos": "Ilustrava o desespero com o talento". Aplica-se à tua escrita? 
Sim, todos os meus livros são uma tentativa de ilustrar a disforia. Aqui há uns anos, alguém me perguntou se eu tivesse de escolher uma palavra portuguesa como a mais bela de todas qual seria. Eu escolhi "disforia". É uma espécie de desalento profundo. A ideia de disforia talvez esteja patente em todos os meus livros. O que eu procuro fazer, com toda a carga poética que emprego nos livros, é partir da disforia para uma possibilidade sublime, que seria essa redenção, mas que é sempre um projecto literário. Na verdade, tenho cada vez menos a convicção de que essa aspiração, essa construção para o sublime, possa ser aplicada à cidadania, ou mesmo à vida. 

Os teus primeiros escritos foram aos seis anos; uns versos sobre a praia.  Neste novo ciclo escolheste o Japão e a Islândia. São ilhas. A escolha dos locais foi propositada? 
Sim, foi.
Há pulsões; há livros à espera. É como se eu tivesse ao longo da vida uma acumulação de livros que ainda não escrevi, mas que esperam por mim. A escolha do Japão foi sedutora, muito também por isso. A deslocação do universo islandês para o japonês é enorme. Eu queria muito a possibilidade de partir para um livro que, apesar de comungar um esforço poético com "A Desumanização", não fosse um livro capaz de ser "A Desumanização". Por isso, eu queria muito deslocar-me para uma mundividência, para uma atmosfera que me desse, por natureza, a impossibilidade de repetir "A Desumanização". No meio das possibilidades todas que eu tinha para escrever um livro, de tudo o que tinha guardado acerca do Japão, achei que trabalhar outra vez com uma ilha faria um díptico interessante com "A Desumanização". 

Essa mudança de ambiente e de referências implicou uma mudança de linguagem? 
Há uma secura maior em relação a "A Desumanização". Há uma poeticidade mais controlada, que acaba por interferir na sintaxe, mas menos exuberante nas imagens. É claro que tem muitas imagens, mas investe mais na desconstrução do lugar das palavras na frase, ou de deturpação do lugar das palavras na frase, e menos no lirismo imediato e puro, como acontecia em "A Desumanização". 

E qual a importância do mar para ti? Estamos a falar de ilhas, vives perto mar, escreveste versos sobre a praia... 
O mar é sempre a aparência do vazio. Podemos olhar para aquela folha de água, como uma página limpa de um livro que ainda não se escreveu. É só aparentemente destituído de texto ou de discurso. O mar, na verdade, é tudo menos vazio. É um contentor tremendo. É o maior dos contentores. A relação com essa planura, com essa máscara, é muito sugestiva. Essa máscara induz-me medo. Lembro-me de quando fui para ali [Caxinas] morar, com os meus nove anos, desconfiar da quietude da água e de achar que num qualquer dia de Inverno a água seria capaz de galgar. Por que razão é que o mar decide parar na areia? A maior parte das Caxinas estão construídas no antigo areal.  

É uma zona com situações dramáticas... 
Essa realidade, que é a das pessoas do mar, é de tragédia expectável e constante. Claro que isso me marcou muito. Os meus pais tiveram um café, dos meus nove aos dezassete, dezoito anos. Nesse tempo, via clientes, que eram também amigos, a desaparecer. Recebíamos a notícia da morte daqueles jovens. Os pescadores eram inevitavelmente jovens. 

E a relação entre o homem e a montanha? Acontece no Japão, mas também existe na cultura ocidental. Moisés e o Monte Sinai, por exemplo. 
A elevação. O lugar da terra que se aproxima do céu, como indicador de proximidade com Deus, com a divindade.  Há uma coisa interessante no imaginário japonês. A maneira como eles dizem montanha é próxima da maneira como eles dizem selvagem. Isso significa que uma montanha é iminentemente um espaço selvagem.  Se viajarmos no comboio-bala, que vai de Tóquio a Quioto, vemos uma paisagem com muita população, mas as casas estão postas nas planícies. As colinas, por vezes ínfimas, são puramente selvagens. Não há intervenção. Existe esse conceito de que a montanha é selvagem. É sacralizada. 
Eu quase transformo a montanha numa personagem porque tento aludir à dimensão sagrada da montanha.  

Itaro parece renascer quando sai do buraco. Há a elevação divina e há um buraco no chão, um ventre... 
Sim, o ventre do Japão. É como se ele deixasse de se conceber como filho de alguém para se conceber como filho da natureza do Japão. Ele nasce daquilo que o sábio monge chama de ventre puro do Japão. Ele recomeça o seu percurso já não por generosidade dos seus pais, mas porque ele participa no espírito divino, animista, do próprio Japão. O hinduísmo, que é a religião endémica do Japão, é puramente animista. Eles têm um deus para cada coisa, para cada detalhe.
Há um deus para as ervas, um deus para as canas, outro para o bambu, um deus para a água, para o vento, para as laranjas... 
Nós simplificámos e juntámos tudo num deus.
Eles querem dizer que cada coisa é divina. Se arranjares um deus para todas as coisas, tu distingues o deus da coisa, mas se arranjares um deus para as laranjas tu dizes que as laranjas são divinas. Há um deus que só toma conta das laranjas. Ela é a obra fundamental de um determinado deus. Isso explica muito a consciência do japonês. Ele respeita todas as coisas, inclusive todas as coisas feias.  

O bicho dentro do poço escuro, sem ser visto, é mais sugerido do que descrito. Cabe ao leitor projectar o seu inimigo ou medo? 
É sobretudo para que o leitor seja confrontado com a escuridão. O Itaro no poço tem uma experiência de cegueira. Foi interessante descrever as coisas ao leitor, obrigando-o ao mesmo tipo de cegueira.  O que eu gosto desse longo capítulo é exactamente a respiração mais paulatina que nos obriga à aprendizagem de uma outra condição, que é a de cegueira. 

Esta alegoria é o capítulo mais longo do livro.  Pensaste nele ao longo da escrita, ou foi a génese do próprio livro? 
Um dia, numa das versões do livro, estou a contar à minha mãe alguns pormenores e aquilo que eu queria criar na história. Disse-lhe, numa daquelas conversas simples e despreocupadas na hora de almoço, que precisava que o Itaro experimentasse a cegueira sem estar cego. A minha mãe, com toda a naturalidade do mundo, disse-me para o atirar para o fundo de um poço. Eu fiquei pasmado. "Eis a minha mãe no seu melhor", pensei. Fez todo o sentido.  

"É fundamental que prepare a fome. A arte da fome", escreveste neste livro. "Arte" e "Fome" são, para mim, antagónicos. Que arte é esta? 
"A Arte da Fome" esteve quase para ser o título do livro. Não foi porque um amigo islandês me avisou de que Paul Auster tem uma recolha de ensaios sobre Arte com esse título.
A aprendizagem é uma espécie de preparação para a miséria. Tem que ver com o Itaro prevendo que empobrecerá mais ainda. Ele precisa de afeiçoar-se à fome, como se precisasse de fazer uma aprendizagem de uma miséria mais profunda e um despojamento mais profundo para subsistir.  

Itaro tem muito medo do escuro e do bicho. Ele tenta conquistar o inimigo com a bondade. Não será aqui que a ficção se afasta mais da realidade? 
Ele diz sempre que está a conceder a liberdade ao inimigo. Ele considera sempre aquele animal como inimigo e predador.  Com abnegação e bondade, Itaro consegue devolvê-lo à liberdade. O bicho será outra vez o predador em solta, sem a sua natureza ter sido alterada. De alguma forma, Itaro acredita nessa possibilidade de redenção. Sem querer, ele fez o ofício das flores do Saburo. Tentou domesticar a fera selvagem. Tem a ver com as utopias, com o nós acharmos que podemos ultrapassar aquilo que é a natureza.  

Itaro significa primogénito? 
Sim, primeiro filho. 

Continuas à volta do tema da paternidade. 
Até certo ponto está pressuposta a família. Ao chamar primeiro filho ao Itaro, está pressuposto um pai. No livro acaba até por entrar fantasmagoricamente culpando-o de alguma coisa. Ao princípio, Itaro não consegue imediatamente definir o quê. 

Fizeste várias versões do livro. O artesão Itaro "era um deus revoltado com a sua criação." Isto acontece-te, como artesão das palavras? 
Quantas vezes fico frustrado com os textos, com o facto de não conseguir clarificar o que verdadeiramente quero... É como se eu pressentisse o livro, mas não o conseguisse evidenciar e concretizar; ou como se estivesse a escrever nesta sala o que está para lá daquela parede, na outra sala. Sinto o que se passa na outra sala; consigo auscultar os seus movimentos. Através dos sons posso construir imagens, impressões e distâncias. Posso começar a imaginar as cores.  

Nesse exercício acabaste por deixar algumas personagens fora do livro? 
Nesse exercício de abandono das diversas versões caíram personagens.  

Sem revelar muito do livro, pode-se dizer que há uma personagem muito forte que, na verdade, não está. A senhora Fuyu... 
É uma personagem forte que não está. É mais importante do que outras que estão presentes. 

Numa entrevista à Visão [22/01/2010], dizes esperar que os livros sejam um percurso com o qual tu aprendas e te aproximes das pessoas e, de vez em quando, façam justiça a alguém. 
Seis anos mais tarde, pensas que alguma vez foi feita essa justiça? 
 Não sei se hoje chamaria justiça, mas que valeram para alguém, valeram. Reiteradamente recebo mensagens e encontro pessoas que me vêm agradecer a importância que algum livro meu teve na sua vida. Por exemplo, no caso esdrúxulo de "O Filho de Mil Homens", há pessoas que decidiram ter filhos depois de ter lido aquele livro. Inclusive, casais que não queriam ter filhos e estavam prestes a separarem-se, mas que se solucionaram depois da leitura daquele livro.  
Chega ao ponto de chamarem Valter a algumas crianças. 

Sabes o que responder numa situação dessas? 
Não sei. Fico atrapalhado, porque há uma responsabilidade minha que eu não consigo assumir. 

Lembro-me de uma situação no Fronteira – Festival Literário de Castelo Branco, em que uma rapariga, apesar de estar muito nervosa, conseguiu dizer que tinha ido ali só para agradecer-te pelo teus livros.  Pelas salas sempre cheias por onde passas, essa aproximação foi conseguida. 
Sim, penso que sim. Quem me acompanha e quem presta a mínima atenção à pessoa que eu sou percebeu que não crio uma barreira entre mim e o leitor. Não tenho a convicção de que uma pessoa se deve exceptuar do convívio com os outros. Por isso, ainda que em determinado momento possa querer ficar quieto e só, o normal é estar disponível para encontrar as pessoas.


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=848348


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1 Comentários

Anónimo disse…
Muito bem conduzida esta entrevista. Parabéns!