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João Valente (Portugal) :CELA| Connecting Emerging Literary Artists








 CELAConnecting Emerging Literary Artists




O Projecto:

O projeto CELA (Connecting Emerging Literary Artists) abre o palco europeu a uma nova geração de criadores literários. Permite uma cooperação transnacional intensiva entre talentosos escritores, tradutores e profissionais literários europeus em início de carreira. No decurso do projeto, os participantes enfrentam algumas das mais exigentes realidades da nossa era — de fraturas cada vez mais acentuadas na Europa a um setor editorial em mudança — e põem-nas em perspetiva, partilham o seu trabalho e colmatam o fosso que os separa do setor editorial e do público europeu.
As organizações literárias de seis países europeus uniram forças para fundar o projeto de incubação de talentos cela — Connecting Emerging Literary Artists. Partilhamos a necessidade de estabelecer uma infraestrutura sustentável de incubação de talentos para preservar a diversidade da literatura europeia e dar maiores oportunidades a línguas minoritárias. 
O projeto proporciona um percurso de dois anos com formação, instrumentos e uma rede que visam tornar possível uma carreira internacional e estabelecer uma prática profissional integrada. Com uma atenção em competências e mobilidade transnacional, incluímos especialmente as oportunidades digitais na literatura, novas formas de os participantes conseguirem emprego e rendimento.
Cada edição do projeto cela decorre durante dois anos. No primeiro ano, as organizações literárias orientam os escritores, tradutores e profissionais literários e proporcionam-lhes um programa multinacional de residências, formação e master classes para os preparar para trabalhar no mercado europeu e para um público internacional. No segundo ano, os participantes são inseridos por via de marketing internacional e campanhas publicitárias, uma digressão por festivais
europeus e apresentações ao público e a profissionais europeus por escritores e tradutores de renome (os nossos embaixadores cela) e organizações literárias. 

Os autores e tradutores participam em campanhas internacionais, festivais literários em diferentes países e numa rede de trabalho que proporcionará contacto entre todos os participantes.
Kick-Off: Hay Festival Segovia (Espanha)Tinto-no-Branco- Festival Literário de Viseu (Portugal), Book Fest (Roménia), Pisa Book Festival (Itália), Lev-Literatura em Viagem (Portugal), Passa Porta Festival (Belgium), Wintertuinfestival (Holanda) recebem os autores e tradutores do projecto CELA.


Parceiros:
Booktailors
Escuela de Escritores
Flemish-Dutch House deBuren
Passa Porta
Pisa Book Festival
Wintertuin


Biografia

JOÃO VALENTE

Ano de nascimento 1977
Nascido em Portugal
Vive e trabalha em Lisboa 
– Licenciado em Relações Internacionais, mestrado em Estudos Europeus
– Eleito um dos Novos Talentos FNAC da Literatura em 2015
– O seu primeiro romance, The Empire, foi aclamado pela crítica e pelos leitores
– The Empire é um exercício sobre como escrever ficção que pareça não-ficção
– Colaborador regular com agências de produção de conteúdos e produtoras

bookoffice.booktailors.com/autores/joao-valente/



Sobre João Valente

«Segui, em tempos, o curso de Relações Internacionais. Olhando para trás, não é de todo um mau percurso para um escritor. Formei-me no que os estudos sociais têm de melhor: tive oportunidade de aprender um pouco de politicologia, economia, sociologia e filologia. É uma boa caixa de ferramentas para quem quer escrever: são competências sociais que é preciso ter», explica João Valente. Parece deter-se um pouco para pensar nas palavras a usar. «Devemos conseguir ver o que se passa à nossa volta.»

«Sempre escrevi. Desde criança que invento histórias e fico feliz por nunca ter perdido isso. Continuo a olhar para a escrita como a coisa mais bonita que existe», diz Valente sorrindo. Depois, mais sério: «É trabalho duro, isso sim. Às vezes é horrivelmente frustrante.» Valente é alguém que muda rapidamente de um tom grave para um tom alegre. Por vezes, fala com um olhar sério e um franzir ondulante na testa, mas nunca demora muito até voltar a soltar uma piada, até os cantos da boca se virarem de novo para cima — um sorriso está sempre próximo.

«Não acredito naquela imagem tradicional do escritor no seu sótão, com um copo de vinho à espera de inspiração», diz Valente. «Não funciona assim. É preciso escrever, escrever muito.» De forma paradoxal, para ele este processo começa apenas realmente quando já está quase a terminar. Assim que um texto parece acabado, começa a reescrita. «Só aí é que vejo realmente o que estou a fazer, sobre o que tenho andado a debruçar-me há algum tempo.» Endireita os óculos, contorce ligeiramente a boca larga: novamente, nota-se o quão próximos estão o seu riso do seu ricto. Esses dois lados parecem unir-se de forma contínua à sua atitude perante a escrita. «A primeira hora é sempre cansativa. Demora um pouco até encontrares as palavras certas. Esse é também o processo de aprendizagem mais importante: não aprendes a ser um bom escritor, quanto muito aprendes a ser um escritor eficiente. Aprendes o que funciona ou não funciona para ti.»

«Escrevo sobre aquilo que conheço. Não é o que fazem todos os escritores? Escrevo sobre aquilo que me rodeia. Sobre o trabalho, a família, sobre viver no século XXI», diz Valente enquanto se ajeita na cadeira. Parece não gostar muito de filosofar sobre o seu trabalho: inicialmente, reage de forma relutante quando questionado sobre se a escolha de certos temas é deliberada. É difícil perceber se está irritado. Talvez sim: ele põe um braço em cima da mesa, inclina-se para a frente e, por trás dos óculos, os seus olhos ganham uma qualidade intensa. «Primeiro: escrevo porque me divirto a fazê-lo. Gosto de o fazer. Em segundo lugar, não tenho nenhuma ilusão de que a minha voz vá mudar o mundo». Num tom mais leve continua: «Não sou um homem numa missão. Esse não é um peso que queira carregar, se quisesse educar as outras pessoas, só me iria censurar a mim mesmo. Não sei ensinar nada a ninguém. Quanto muito posso dar a conhecer algo novo.»

Metade do ofício de Valente consiste em ler. «Pelo menos metade», diz corrigindo-se. «Já enfatizei isso o suficiente? Enquanto escritor, é preciso estar quase permanentemente a ler. A sério, um escritor tem de ler livros, jornais e revistas, mas também expressões. Ler é observar: estou continuamente a estudar as pessoas à minha volta.» Depois, sorri abertamente. «Se não conseguires observar, nunca serás um bom escritor. Nem sequer um mau escritor serás.»

    Testemunho





Conto de João Valente

Finalmente tens um quarto só para ti

Estou desconfortável, mas sem arriscar mexer-me para não te acordar. 
Alongo as costas e atenuo a moinha. Estou meio sentado na borda da cama, deixando o colchão à tua disposição. Caíste num sono profundo e aproveito para te afagar os cabelos com meiguice. Não gostas que o faça quando estás acordado.
Era no sofá que me desforrava. Nos momentos em que quase adormecias, embalado por um dia de correrias e brincadeiras, punha-te a ver desenhos animados. Nessa altura, enchia-te de cafunés. Aceitavas os meus mimos por estares num estado de semiconsciência. Deixavas-te estar, chuchando ruidosamente. Sei que a acção é condenável. Obrigava-te a ver televisão quando tinhas sono apenas para te conseguir encher de amor.
Para eu me sentir bem.
Agora, enquanto dormes, enrolo os teus caracóis à volta dos dedos. Hoje, fico contigo. Já te troquei demasiadas vezes. Precisava de trabalhar, ver os mails, o Twitter, o Facebook, arrumar a casa, lavar a loiça, fazer o jantar, marcar as férias, ver a bola, ir ao ginásio, fazer a barba, jantar com
amigos, jantar com a mãe, ver o vídeo do gajo-que-caiu-a-andar-de-mota, ler o jornal, ler o livro, ler a revista, ver as mensagens, carregar o telemóvel, lavar a roupa, pôr gasóleo, depositar dinheiro, levantar dinheiro, fazer o pagamento, beber uma cerveja, ver um filme, tocar guitarra, arranjar o varão dos cortinados. E, depois de tudo isto, tu continuavas à minha espera.
Finalmente tens um quarto só para ti. Não precisas de o partilhar com o teu irmão. E é azul. Sempre nos pediste um quarto azul. Com uma televisão. Eu sou contra televisores nos quartos, mas, desta vez, não ia recusar. Já viste como tudo está arrumado? Cada coisa no seu lugar: limpo, dobrado, ordenado. Tão diferente da enxovia onde dormiam. Havia dias em que nem conseguia ver o chão, coberto de brinquedos, jogos, livros e roupa.
Lembras-te das férias em que passámos por uma máquina de brindes? Daquelas em que se põe uma moeda e cai uma cápsula de plástico com um brinquedo lá dentro? Jantámos pizza e comemos gelado. No fim da noite, apontaste para a máquina: «Põe uma moeda, papá.» Quando te respondi que não, desataste aos gritos, a chorar. Deitaste-te no chão da rua, a bater com os pés e as mãos na calçada, e senti vergonha. As pessoas olhavam para mim. Uns criticavam a minha avareza, outros desprezavam a forma como te educara. Sabias disso. Alimentavas-te do olhar depreciativo dos turistas para apresentar o teu espectáculo. Nessa noite mantive-me firme. Ao fim de algum tempo, a birra deixou de ser por causa da máquina. Era porque sim, misturando-se com o sono e o orgulho ferido. Voltaste para o hotel, arrastado pelo chão e de mãos vazias. Atrás de nós, um rio de ranho e lágrimas desenhava o caminho. Adormeceste a soluçar. O sono fez as pazes entre nós.
Sabes que, disfarçado de pedagogia paternal, tive um prazer desprezível em negar-te esse momento de felicidade? Dava-te tudo de mão beijada. Calava os teus pedidos cedendo. Compensava a minha ausência com sequências de prendas. Negar-te um capricho era dizer que tudo ia ser diferente. Que podias brincar comigo.
Estás a mexer-te... Dói-te alguma coisa? Afago-te a cabeça, deixo o meu dedo desenhar-te a testa e o nariz. Acabas por sossegar e continuas a dormir. Não seria dor. Apenas um sonho mau. Não te preocupes, o pai está aqui. Não vou deixar que os monstros entrem no quarto, muito menos que te façam mal. Sou obrigado a conviver com os meus monstros todos os dias. Vivo aterrorizado desde que tu e o teu irmão nasceram.
Tenho medo do que vos possa suceder: as doenças, os acidentes, que deixem de gostar de mim, que a vida nos afaste ou que sejam infelizes. E há sempre aquela questão que não pronuncio perante ninguém: o que me aconteceria se te perdesse? Há um fardo que cai sobre os meus ombros a cada sorriso teu. Em cada momento de bem-aventurança vem-me à boca o sabor agridoce da possibilidade de perder a fonte de felicidade. A vida seria mais suportável se nunca te tivesse conhecido. Correria como correria.
Como tivesse de ser. Mas, agora que te conheço, não consigo ignorar-te. O amor paternal é a maior pena a que podemos ser condenados. Eterno e infinito, é intolerável. Demasiado concentrado para ser carregado.
Demasiado simples para ser compreendido. Depois de nasceres, morri. Os meus desejos, a minha vontade, os meus planos, a minha vida desapareceram. Agora, não posso voltar atrás. Anestesiando
voluntariamente a dor nas costas para não seres incomodado, esqueci-me de quem era antes de ti.
O pânico alimenta-se da impotência. Foi assim que me senti no hospital, há meses. Entraste com febre alta. Submeteram-te a uma sucessão de análises sem conseguirem identificar o que te afligia. Os primeiros resultados animaram-me. Respirava de alívio a cada despiste de doenças.
Ao final do dia, contudo, desejava que tivesses algum problema. Não identificar aquilo de que sofrias poderia significar um diagnóstico raro ou grave. Ou a soma dos dois. Quanto mais eu queria saber o que tinhas, mais o médico insistia em me dizer o que não tinhas, porque determinado reagente falhara na sua missão de oráculo. Os pais com que me cruzava no corredor da pediatria sorriam em solidariedade. Eu sorria-lhes de volta.
Não se fazem análises nos hospitais durante a noite. Insistem que os doentes devem descansar. Dessa vez, dormiste com a tua mãe. Baixaram-te a febre, alimentaram-te e deram-te brinquedos. Voltei para casa e adormeci o teu irmão. Acomodava um pânico que me obrigou a andar pelo corredor a noite toda. Evitei olhar para as tuas fotografias e brinquedos. Ser pai é uma tensão permanente entre termos contraditórios e incompatíveis. Por um lado, quero que a tua vida seja longa e feliz. Por outro, sei que qualquer existência tem como certeza a morte. A ideia de que «nenhum pai deve assistir à morte de um filho» é uma tentativa espúria de mitigar a contradição. Sabemos o que vai acontecer, mas preferimos não o viver.
Sabê-lo dá cabo de mim. Como se não merecesse a felicidade que é ser teu pai e tivesse medo de que, um dia, Deus ou o universo ou a estatística o percebessem. Como posso aproveitar a felicidade de estares aqui, sabendo que um dia podes não estar?
Acordei no dia seguinte sem ter adormecido. Tratei de mim e do teu irmão de forma mecânica. Voltei ao hospital e já fazias nova bateria de análises. Quando o médico voltou, ao fim de trinta minutos que pareceram trinta anos, brincou contigo, referindo-se a um «valentão». Explicou-nos que tinhas uma infecção pouco comum, mas tratável com antibióticos. E que serias acompanhado para se perceber a razão de uma infecção tão súbita e violenta.
Hoje, antes de adormeceres, perguntaste pela mãe e pelo mano. «Agora não estão aqui», respondi. Esta noite fica o pai contigo. A mãe ficou com o mano. Um dia havemos de trocar. É para o teu bem que fazemos isto. Custa-me tanto como a ti, mas é a coisa certa. A tua mãe não te ama menos por ter ficado com o teu irmão, nem eu te prefiro só porque estou aqui, na primeira noite neste quarto.
Que recordações terás daquela vez em que acordaste a meio da noite, aterrorizado por um pesadelo? Pediste o colo da mãe, mas a mãe estava fora, em trabalho, e só voltaria no dia seguinte. Nessa noite, tentei tudo.
Beijei-te, abracei-te, peguei-te ao colo, embalei-te na cama e levei-te para a sala. O choro aumentou de volume e tornou-se colérico. Acordaste o teu irmão e eu convenci-o a voltar para a cama, carregando-te ao colo em movimentos de contorcionista. Querias a mãe. Tinhas o meu calor, os meus afagos, a minha voz, mas recusavas-me. A mãe estava longe, inalcançável. Terias de te contentar comigo. Aos poucos, percebeste-o: o choro descontrolado deu lugar a uma suave ladainha, interrompida por guinchos cada vez menos frequentes. Próprios de quem percebe que o sono vai vencer. Comprazia-me com cada um destes gritinhos. Sentia-me vingado pela rejeição a que me sujeitaras. À medida que te caíam as pálpebras eu serenava e desaparecia-me o sentimento de inveja. Demorei a deitar-te na cama. Não porque quisesses mais colo, mas porque eu necessitava de te ter nos braços.
Quando os teus avós vos ofereceram uma enorme caixa de lápis de cera, fizeram-no para dar largas à vossa imaginação, mas esqueceram-se de que, neste tipo de prendas, a quantidade de papel em branco deveria ser proporcional à tinta, grafite ou cera disponível. Infelizmente, as poucas páginas do caderno que os acompanhavam foram consumidas num ápice, deixando os lápis com muita cera para gastar. Em consequência, fui brindado com um mural de beleza discutível na parede branca do corredor.
A mesma parede que tanto trabalho me dera a pintar, semanas antes, por encomenda da vossa mãe. Uma empreitada que vinha com um caderno de encargos: deveria ser feita de manhã para que as janelas abertas dissipassem o cheiro a tinta até ao final do dia.
Serviu de muito... Pouco tempo depois, as paredes do corredor pareciam os braços de um jogador de futebol, tatuadas com gatafunhos intrincados e das cores mais bizarras. Fiquei furioso. Convosco por causa das pinturas rupestres e com a vossa mãe pela forma leviana como encarou o sucedido. Perdi uma tarde com um alguidar de água e uma medida de lixívia a apagar os desenhos, apenas para perceber que as marcas do crime eram indeléveis. Mesmo depois de nova sessão de pintura com rolo, trincha e duas demãos da tinta mais cara do Aki.
Fiz uma tempestade num copo de água. Ainda se viam os desenhos na parede do corredor? Talvez os devesse lá ter deixado. A parede apresentar-se-ia mais original, menos anónima. Uma parede branca é uma parede branca. A parede que vocês pintaram era só nossa. E eu destruí-a.
Talvez a culpa de tudo isto seja minha. Uma parede não tem de ser branca. Pode ser o que eu quiser. Ou o que vocês quiserem. E que um corredor pode ser mais do que uma passagem entre dois pontos. Pode ser um museu mutável das vidas dos que passam por ele.
Tu defines-me. A minha vida é um mapa em que és a latitude e longitude. Por mais distante que esteja, sei sempre onde estou em função de ti. Quando nasceu o teu irmão já não houve um corte com o passado. Gosto dos dois de forma igual, mas sabia ao que ia.
Descobri que vivo rodeado de especialistas em parentalidade que podiam ser excelentes treinadores de bancada. Limitaram-se a ter um filho ou dois, mas parecem saber imenso da poda. Como se, por conseguirem cozinhar um par de pratos, fossem críticos gastronómicos encartados.
Outros, sem nunca terem cozinhado na vida, explicavam-me até à exaustão o que devia e não devia fazer. Para vosso bem, eu e a tua mãe somos — ou éramos — um casal orgulhoso. Sem ligar ao que diziam, optámos por navegar à vista. Houve momentos em que ficámos à deriva. Li os best-sellers da puericultura como se fossem romances e percebi que a história é igual em todos: tu crescerás por entre desafios e interrogações até seres um adulto feliz. Sem ter entrado no quadro de honra dos pais, fiz um trabalho razoável. Não é inevitável que vocês se tornem marginais e tiveram uma infância satisfatoriamente feliz.
Queria que estivéssemos os quatro em casa. A esta hora já vos tínhamos deitado e lido uma história. Faltava o beijo para que dormissem em paz. De que serve teres um quarto só para ti, se estamos sozinhos? Não sei o que fazer. Não há chip escondido, sexto sentido ou intuição que me valha. Sinto que falhei. Como marido e como pai. Uma família não se desune. Eu não deveria passar a noite, meio sentado na cama para não te acordar, longe da tua mãe. Não sou culpado pelo que aconteceu. Ninguém tem culpa. Mas sou culpado pelo que não aconteceu. Pelo que não fiz, pelas vezes em que não estive presente, pelas gargalhadas que não te provoquei, pelo carinho que não dei à tua mãe, pelo exemplo que não fui, pelas prioridades erradas que estabeleci.
Levantei-me sem que notasses. Devagar, pressionando o colchão para que a mudança de peso não o elevasse. Não te queria abandonar, mas a bexiga é impiedosa. Na verdade, nem te estava a abandonar. A casa de banho está a dois passos do quarto. Enquanto lavava as mãos, ouvi um barulho no corredor. Abri a porta e vi a equipa de serviço debruçada sobre ti. A enfermeira olhou-me com uma expressão de impotência triste. O médico movia-se com rapidez e era o protagonista de um bailado louco, acompanhado pelos assistentes que tentavam resgatar a vida que te abandonava. Só eu permanecia quieto. Impávido. Sem poder fazer nada.
Queria trocar de lugar contigo. Queria ser eu a abandonar a vida, deitado nessa cama de hospital. Tu poderias continuar a viver, livre da doença, a crescer e sorrir. Mas isso não me era permitido. Os médicos avisaram-me. Eu preparara-me, mas só então percebi a futilidade do exercício. Cai sobre o cadeirão preparado para as visitas. Esperei que a equipa médica desistisse de te salvar.
Voltei a sentar-me na cama. Respeitando a minha dor, o médico deixou que te abraçasse e te desse mais uma vez, uma última vez, o meu colo. Não conseguia acreditar que tivesses morrido. O teu corpo estava quente. A cara desenhava um sorriso suave, de paz. Para mim, estavas a dormir. Durante uns instantes, até que a mão serena e firme do médico me tocasse no ombro e me chamasse de volta, acreditei que dormias. Junto a mim. Ao colo. Com a vida toda pela frente.





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